A expressão da bondade fundamental está sempre ligada à benevolência – não uma benevolência morna, débil, água-com-açúcar, mas uma benevolência íntegra, animada, uma benevolência de quem tem ombros e cabeça aprumados. A benevolência, nesse sentido, provém da experiência da não-dúvida, da ausência de dúvida. Ser livre de dúvida nada tem a ver com aceitar a validade de uma filosofia ou de um conceito. Não se trata de converter-se ou submeter-se a uma cruzada até já não se ter qualquer dúvida sobre as próprias crenças. Não estamos falando de pessoas que nunca têm dúvidas e que fazem proselitismo evangelizador, estando sempre prontas a se sacrificar por uma crença. Não ter dúvida significa confiar no coração, confiar em si mesmo. Não ter dúvida significa ter vivido a experiência de relacionar-se consigo mesmo, a experiência de sincronização entre mente e corpo. Quando a mente e o corpo estão sincronizados, não se tem dúvida.

Chögyam Trungpa

[Trungpa, Chögyam. Shambhala: A Trilha Sagrada do Guerreiro. Tradução de Denise Moreno Pegorim, supervisão, revisão técnica e notas de Lincoln Berkley. São Paulo: Cultrix,1997, p. 54.]

Há momentos na vida em que uma pessoa sabe. Modestamente posso afirmar que já passei por algumas situações em minha vida em que eu soube. Mas esse saber é de uma ordem que não a do saber racional. Pode parecer contraditório afirmar isso, mas não é.

De fato, a primeira dimensão do saber é racional: é o que acontece, por exemplo, quando leio um texto sobre a Espanha em que sou informado de que esse país está situado na Europa. Depois disso, poderei afirmar sem medo de errar: eu sei que a Espanha fica na Europa. Esse seria, digamos, um saber da ordem da racionalidade, que pressupõe o conhecimento intelectual.

Mas existe uma outra ordem do saber bem mais profunda, bem mais radical. É um saber que não admite dúvidas, não admite contestações . Esse saber passa, obrigatória e necessariamente, por uma experiência de cunho existencial. Ele transcende todas as categorias racionais, porque inclui bem mais que a razão, que é apenas uma das dimensões de nosso ser.

Neste saber estão absolutamente integrados corpo e mente. Porque há situações em que uma pessoa sabe com o corpo. É difícil explicar o que é saber com o corpo. Mas quem já teve oportunidade de experimentar aqueles raros momentos de lampejo em que uma clara e límpida percepção toma conta de nós, envolvendo-nos totalmente, sabe do que estou falando. Quando isso acontece, uma pessoa é. Não há mais diferença entre aquele que percebe e a coisa percebida; na verdade, a pessoa é, neste momento, a própria percepção.

É uma experiência que dura não mais que átimo de segundo. Mas é, estranhamente, algo de tal magnitude que deixa o sujeito totalmente transformado. O curioso é que, passado aquele momento fugaz, fica uma tal sensação de tranquilidade e bem-estar, de pacífica coexistência consigo mesmo, que o sujeito, em sua alegria serena, não sente qualquer necessidade de questionar nem, muito menos, de convencer ou converter a quem quer que seja. Porque sabe que aquela é uma experiência que independe de qualquer esforço de convencimento. Ela acontece quando tem que acontecer,  e isso é tudo.

E porque agora SABE, não só com a mente, mas igualmente com o corpo, aquele sujeito não precisa mais apelar para o proselitismo, pois somente os inseguros de suas  próprias convicções se fazem prosélitos, por uma íntima e avassaladora necessidade de convencer os outros do que ele próprio talvez não esteja totalmente convencido

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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