Devo a Victor Smirnoff algo de muito íntimo no meu modo de ser psicanalista. Algo que ele me transmitiu ou que ele permitiu que eu me apropriasse – e acho que essas duas possibilidades não se excluem. Há o homem com seu humor, sua vivacidade, a inteligência e a elegância, seu interesse pela literatura, pelo cinema, pelo teatro, pela música, pela pintura, pela política e pela vida comum da cidade. Era possível adivinhar o gourmand, o homem do mundo. Bem como a possibilidade das cóleras, das intransigências. Sua paixão pela psicanálise, seu engajamento no trabalho, a ética, a transversalidade em relação às teorias. Tudo isso,  mais a invenção permanente do encontro, estava sempre presente, constituía o tecido de sua presença e, no entanto, não explica um contentamento alegre que sustentava, que estimulava. Eu me sentia no aconchego, era gostoso estar com ele pensando junto, era confortável, cosy, intenso.

Heitor O ´Dwyer de Macedo

[Macedo, Heitor O´Dwyer de. Cartas a uma jovem psicanalista. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 157. (Estudos; 285)]

Heitor O´Dwyer de Macedo é um psicanalista brasileiro que desde 1969 mora na França. A editora Perspectiva acaba de lançar um livro de sua autoria, intitulado Cartas a uma jovem psicanalista.  Pretendo brevemente postar um texto neste blog comentando o livro, mas não o farei ainda porque não concluí a leitura. Entretanto, embora este texto que ora posto aqui não seja ainda um comentário do Cartas a uma jovem psicanalista, foi inspirado nele. A ideia de escrevê-lo surgiu quando li a carta 22, O exemplo de Victor Smirnoff.

Nessa carta, o autor comenta a sua relação com um de seus supervisores enquanto fazia a formação em psicanálise, o psicanalista francês Victor Smirnoff. A certa altura, no entusiasmo poético com que fala de seu supervisor, escreve: “Smirnoff era a prova de que o tédio é antinômico ao pensamento, ele era a demonstração viva, a afirmação de que os materiais das descobertas clínicas em psicanálise dependem das qualidades da infância: disponibilidade para o instante, para o espanto, para a emergência, para a angústia alegre da aventura, para o risco do desconhecido” (p. 162).

Ler o trecho acima me fez pensar na angústia alegre da aventura que é a psicanálise, tanto para quem está na posição de analista quanto na de analisando. Uma análise – quem já frequentou um divã de psicanalista o sabe muito bem – demanda uma boa quota de angústia. Principalmente quando as resistências se fazem notar de forma muitas vezes avassaladora, a tentação a desistir é grande. No entanto, é preciso persistir, pois a resistência é apenas um dos elementos inerentes ao trabalho analítico. Na verdade, se bem manejada, a resistência pode se converter de motivo para a desistência em motivo para a persistência, para o prosseguimento do processo.

Em contrapartida, deve-se considerar que, mesmo sendo a angústia inerente ao tratamento psicanalítico, ela não precisa ser uma angústia aniquiladora. Foi nesse ponto que descobri a grande novidade da carta de Heitor O´Dwyer de Macedo aqui comentada, pois ele fala de uma angústia alegre.  

E por que, cabe-nos indagar, a angústia experimentada por quem se submete a uma análise é uma angústia alegre? A resposta está em que uma análise é também uma grande aventura, na verdade uma das mais apaixonantes e fantásticas aventuras a que alguém pode se entregar. É a aventura da exploração dos meandros assustadores e tenebrosos do nosso inconsciente.  Pois  é exatamente pelo  fato de nos proporcionar essa aventura que  o autor é levado a usar para se referir a essa angústia o qualificativo de alegre.

Para concluir, gostaria de dizer que  é preciso não olvidar que o inconsciente, essa  caverna onde jazem monstros horripilantes, abriga também os mais belos deuses, as mais belas divindades. Mas para que as divindades venham à tona e os demônios sejam exorcizados, é imprescindível entrar de corpo e alma na angústia alegre da aventura psicanalítica. Tal aventura se caracteriza por ser, antes de tudo,  um processo longo e oneroso, que demanda muita paciência, mas cujo resultado podem ser maravilhosamente surpreendente

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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