Noite alta, início da madrugada. Embora mantenha os olhos hermeticamente fechados, continuo acordado. A perda do sono e a escuridão do quarto liberam minha imaginação na busca de imagens e fatos há muito perdidos na imensidão do tempo. Meu pensamento, como um trem expresso, se desloca em velocidade vertiginosa em direção ao passado e faz escalas não programadas em épocas e lugares distantes. E eu, passageiro insone, aos poucos localizo, nos recônditos esconderijos da memória, as lembranças mais remotas de minha existência.

Seridião Correia Montenegro.

[Montenegro, Seridião Correia. O expresso do passado. – Fortaleza: Tiprogresso, 2010, p. 23.]

Quinta-feira da semana passada, pouco depois de acordar, peguei na cozinha  uma xícara de café, e, depois de me instalar comodamente na cadeira onde sempre faço minhas leituras,  embarquei n’O expresso do passado para uma viagem no tempo.  E, de fato, imediatamente me senti transportado ao passado, como se houvesse entrado numa dessas cápsulas do tempo que vez por outra aparecem nos filmes de ficção científica.

Essa sensação pude experimentar logo na primeira escala da viagem, que aconteceu numa determinada estação situada no número 1297 da Rua General Sampaio. Tão logo o expresso parou, um senhor simpático e conversador, de nome Seridião, a quem eu acabara de conhecer ao embarcar naquela viagem  – de quem eu me fizera companheiro de jornada ao sentar ao seu lado -, apontando uma das esquinas  do quarteirão, falou:

“Na esquina da Rua General Sampaio com Pedro I, havia a ‘bodega’ do ‘seu Noronha’,  onde fazíamos as nossas compras do dia a dia.

“De acordo com o costume da época, na bodega todos compravam fiado. O valor da compra era anotado na ‘caderneta’, para pagamento semanal, quinzenal ou mensal, de acordo com a periodicidade do pagamento do salário do ‘freguês’. Era raro alguém pagar no ato da compra, mas, na data prevista, o freguês quitava seu débito, para manter o crédito e poder continuar comprando” (p. 27).

Aqueles dois episódios foram suficientes para realmente me precipitar de volta ao passado. Por dois motivos: primeiro, porque quando vim morar em Fortaleza, lá pelos idos de 1980, minha primeira residência foi uma pensão na Rua 24 de maio, entre as ruas Pedro I e Pedro Pereira, e na esquina apontada pelo meu companheiro de viagem eu passava quase diariamente; segundo, porque relembrei minha adolescência, quando, ainda residindo em Massapê, eu trabalhava com meu pai em sua mercearia e inúmeras vezes anotei numa caderneta os “fiados” que eram pagos no fim do mês;  prática, aliás, ainda hoje adotada por ele, pois papai, aos 74 anos, mantém seu estabelecimento comercial em plena atividade.   

Depois dessa parada rápida nossa viagem prosseguiu, e, novamente bem instalados no expresso – ali fazendo a vez de cápsula do tempo -, assumiu meu companheiro a incumbência de me proporcionar boas gargalhadas, à medida em que relatava episódios hilariantes de sua história.

Num desses episódios,  Salvina, amiga de sua mãe que, em certas ocasiões, a ajudava nos afazeres domésticos e na lida com as crianças, tendo que resolver uma pendência no Colégio da Imaculada e não tendo com quem deixar o pequeno Seridião de apenas dois anos de idade, não viu outra alternativa senão vestir o pequeno com roupas femininas e levá-lo junto, uma vez que aquele estabelecimento de ensino era apenas feminino. Tudo corria muito bem e a ‘garotinha’ estava mesmo sendo um sucesso entre as irmãs, pois todas queiram pô-la no colo. O problema é que a ‘pequena’ havia ingerido bastante suco e aí aconteceu o inevitável, conforme narrou o próprio Seridião:

“Em pé sobre uma pequena mesa de sala de entrada do colégio, num movimento natural e inesperado, levantei o vestido, puxei lateralmente a calcinha e deixei escorrer, abundantemente, o líquido acumulado, diante do olhar atônito e constrangido das freiras presentes” (p. 32).

Depois dessa narrativa que me arrancou uma gargalhada daquelas que provoca na gente uma verdadeira catarse, nossa viagem prosseguiu, permeada de outras tantas histórias engraçadas e curiosas. Ao mesmo tempo, aquela jornada n’O expresso do passado me proporcionou a oportunidade de conhecer uma Fortaleza que eu não conhecia, pois diversos dos sítios e logradouros elencados por Seridião não mais existem ou foram modificados, lugares estes que uma pessoa como eu, que veio morar em Fortaleza apenas no início da década de 80, não teve oportunidade de conhecer.  Ao mesmo tempo, tomei conhecimento de fatos protagonizados por algumas pessoas que eu apenas conhecia devido à projeção que adquiriram em virtude de suas atividades profissionais ou funções hoje exercidas, o que as projetou no cenário de Fortaleza, com as quais Seridião teve oportunidade de conviver na juventude.

É isso o que proporciona a leitura do livro de Seridião Correia Montenegro, O expresso do passado, uma agradável jornada pela história do autor, entremeada de relatos bem humorados, além de um reencontro com lugares e personagens que fizeram a história de nossa amada Fortaleza, cidade da qual me fiz filho por adoção.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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