(…) o argumento de Tomás de Aquino em favor da revelação é bastante racionalista; e, por outro lado, claramente democrático e popular. Esse argumento nada tem contra a razão. Ao contrário, parece inclinado a admitir que poderíamos alcançar a verdade através de um processo racional, se fôssemos suficientemente racionais; e também se continuássemos racionais durante o tempo necessário para isso. Na verdade, algo de seu caráter, que em outro lugar chamei de otimismo, e para o qual não conheço outro termo mais próximo, levou-o antes a exagerar o grau até o qual todos os homens acabariam por ouvir a voz da razão. Em suas controvérsias, São Tomás sempre supõe que os homens vão ouvir a voz da razão. Isto é, ele acredita firmemente que é possível convencê-los por meio da argumentação, quando eles conseguem acompanhá-la até o fim. Só que seu senso comum lhe disse ainda que a argumentação não termina nunca. Eu poderia convencer um homem de que a matéria como origem da mente é algo bem insensato se ele e eu gostássemos muito um do outro, e discutíssemos acaloradamente um com o outro todas as noites durante quarenta anos. Mas, bem antes de ele se convencer, já no leito de morte, teriam nascido mil outros materialistas, e ninguém seria capaz de explicar tudo a todos. São Tomás julga que a alma de todas as pessoas comuns que trabalham duro e têm uma mente não sofisticada é tão importante como a alma dos pensadores e dos que se dedicam à busca da verdade; e pergunta como todas essas pessoas poderiam encontrar tempo para a quantidade de raciocínios necessária para a descoberta da verdade. Todo o tom da passagem mostra tanto o respeito pela pesquisa científica como uma forte simpatia pelo homem comum. Seu argumento em favor da revelação não é um argumento contra a razão, e sim a favor da revelação. A conclusão que ele tira disso é que os homens têm de receber as verdades mais elevadas de maneira miraculosa, pois do contrário a maioria não as receberia. Seus argumentos são racionais e naturais, mas suas deduções são todas favoráveis ao sobrenatural; e, como é comum no caso de sua argumentação, não é fácil encontrar nenhuma dedução a não ser na própria dedução que ele faz. E, quando chegamos lá, descobrimos que é algo tão simples quanto o próprio São Francisco teria desejado que fosse: a mensagem vinda do céu, a história contada a partir do céu, o conto de fadas que na realidade é verdadeiro.

G. K. Chesterton

[Chesterton, G. K. São Tomás de Aquino: as complexidades da razão. In: Chesterton, G. K.  São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. Tradução Adail Ubirajara Sobral / Maria Stela Gonçalves. – Rio de Janeiro: Ediouro, 2009, p. 208.]

Adquiri recentemente um livro editado no Brasil pela Ediouro que inclui duas biografias escritas por Gilbert Keith Chesterton: uma, de São Francisco de Assis, e outra de São Tomás de Aquino. Tenho me dedicado à leitura desta última. Um trecho, em especial, tem sido motivo para muita reflexão. Citei-o em epígrafe a este texto. Nele, o autor fala da discussão levada a efeito pelo Doutor Angélico a propósito do binômio razão e revelação. Conforme Chesterton, a conclusão do Santo “é que os homens têm de receber as verdades morais mais elevadas de maneira miraculosa, pois do contrário a maioria não as receberia”.

Nunca li Tomás de Aquino, embora tenha em minha biblioteca os volumes da Suma Teológica. Era uma leitura que eu vinha adiando. O encontro com a biografia de Chesterton, porém, tem sido um incentivo especial para que me disponha a iniciar logo o projeto. Interessa-me particularmente essa interação entre a fé consciente e racionalmente admitida e aceita, e a fé revelada. É uma questão em aberto. Ainda não está claro para mim até que ponto a fé pode ser uma escolha apenas racional, e, uma vez feita a opção por essa via de acesso, até que ponto tal fé pode se mostrar eficaz.

Inclino-me a pensar, no estágio em que me encontro, que a fé verdadeiramente autêntica e eficaz é aquela que se impõe ao indivíduo através da revelação. Ao afirmá-lo, porém, o faço com certa precaução, pois também não tenho quaisquer garantias quanto à existência ou não de verdades reveladas. Permaneço, ainda, no limbo da dúvida. Creio ainda muito racionalmente, muito mais por tentativa que por convicção.

É por isso que eu não poderia concluir este breve texto de outro modo a não ser me valendo das últimas linhas do excerto da biografia escrita por Chesterton, citada em epígrafe. Diz o autor:

E, quando chegamos lá, descobrimos que é algo tão simples quanto o próprio São Francisco teria desejado que fosse: a mensagem vinda do céu, a história contada a partir do céu, o conto de fadas que na realidade é verdadeiro.

De fato, não me é raro pensar o monumental arcabouço da fé cristã como um grande e bem elaborado mito, no qual estão imbricados alguns (poucos?) fatos comprovadamente históricos, ou seja, em última análise, talvez um magnífico conto de fadas. A questão é: será que Chesterton tem razão quando afirma que este conto de fadas “na realidade é verdadeiro?”

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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