Haverá algum entre vós que acredita poder poupar-se o caminho? Poder eximir-se astuciosamente do sofrimento de Cristo? Eu digo: este se ilude para seu próprio prejuízo. Ele se deita sobre pregos e fogo. Do caminho de Cristo ninguém pode ser poupado, pois este caminho conduz ao que virá. Vós todos deveis tornar-vos Cristos.

Vós não superareis a velha doutrina fazendo menos, mas fazendo mais. Cada passo para mais perto de minha alma estimula o riso de deboche de meus demônios, aqueles bisbilhoteiros e envenenadores covardes. Para eles era fácil zombar, pois eu tinha coisas estranhas a fazer.

C. G. Jung

[Jung, C. G. O Livro Vermelho: Liber Novus. Editado por Sonu Shamdasani; prefácio de Ulrich Hoerni; tradução: Liber Novus, Edgar Orth; introdução, Gentil A. Titton e Gustavo Barcellos; revisão da tradução, Walter Boechat. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2010,    p. 234.]

Ao nascer, a cada um de nós foi delegada uma tarefa, ou, noutras palavras, uma missão. Não nos resta outra alternativa, portanto, senão cumpri-la fiel e integralmente. O exemplo paradigmático dessa premissa é o episódio de Cristo no Getsêmane. Naquele que foi sem dúvida o momento mais crucial de sua vida, ele experimentou a sós a grande solidão da decisão que ninguém mais poderia tomar, a não ser ele mesmo: beber ou não o cálice que o Pai lhe destinara.

Penso que todos nós temos o nosso Getsêmane. Certamente passamos por diversas situações em que somos forçados a tomar decisões. Uma decisão é sempre algo difícil, porque envolve responsabilidade, pois implica em arcar com as consequências. Mas creio que há um determinado momento, uma única ocasião em que cada um de nós, humanos, é chamado à experiência do Getsêmane. É quando nos é dada a oportunidade de sorver o cálice que o Pai nos reservou.

Que momento estupendo! Que decisão grandiosa! Que solidão tamanha! Que responsabilidade!

Tudo o que há de vir dependerá da nossa decisão.

E a quem recusa o cálice que lhe está reservado, o que resta? Seguir, talvez, como um errante pela vida afora, sem rumo e sem prumo.

Urge fazer coincidir a vontade pessoal com a vontade divina. Somente nessa perspectiva pode-se afirmar o imperativo da vontade. Paradoxal, sem dúvida, essa afirmação. Mas quem se dispõe a sorver o cálice até a última gota só encontra explicação no paradoxo. De fato, não se trata nem mesmo de explicação; trata-se, isso sim, de viver o paradoxo.

Perder a vida para ganhar a vida, como asseverou o Mestre. 

Os que aceitam o cálice não raras vezes parecem fazer coisas estranhas. Isso provém do fato de assumirem integral e radicalmente sua singularidade. E quem assume sua singularidade é sempre um estranho ao rebanho que não suporta as ovelhas que insistem em se desgarrar da turba.

Mas é preciso dar vazão ao estranho que habita em nós, ousar fazer coisas estranhas aos olhos da turba, do contrário não se chegará jamais ao lugar que verdadeiramente nos está destinado e que, portanto, nos pertence por direito.

Isso é cristificar-se, tarefa da qual Jung falou de forma tão perfeita em um trecho do hermético  O Livro Vermelho.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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