Uma característica atribuída ao povo brasileiro é a tolerância religiosa. O caldeirão de culturas que formou o País teria propiciado a convivência harmônica entre os diferentes credos, ao contrário de outras nações onde violentas disputas derramam sangue inocente. Na prática, porém, a realidade é outra. Seguidores das religiões afro-brasileiras sempre conviveram com a desconfiança alheia. Nos últimos tempos, há indícios de que a situação se agravou. Somente no Rio de Janeiro, são contabilizados, por ano, quase 100 casos de agressões morais ou físicas envolvendo intolerância religiosa em relação aos praticantes de umbanda e candomblé.

Juliana Dal Piva e Michel Alecrim

[Juliana Dal Piva e Michel Alecrim. O avanço da rivalidade religiosa, p. 75. Em: Revista Isto É, 9 NOV/2011, Ano 35, Nº 2191. São Paulo: Editora Três.]

Eu não poderia ficar calado depois de ler a reportagem publicada na revista ISTO É da semana passada. Na matéria, da autoria de Juliana Dal Piva e Michel Alecrim, de onde citei acima o trecho inicial, faz referência ao crescente número de agressões dirigidas a praticantes das religiões afro-brasileiras. Os responsáveis, conforme a reportagem, seriam principalmente adeptos das igrejas neopentecostais.

Quando leio uma matéria dessa natureza o meu primeiro sentimento é de indignação, de grande indignação e revolta. Por mais que eu saiba que religião, política e futebol são as áreas em que a emoção humana fala com mais força, obnubilando na quase totalidade das vezes a razão, nem por isso posso pactuar com a tal intolerância.

Principalmente em se tratando do Brasil, tal postura é mais inadmissível ainda. Muitos estrangeiros que por aqui aportaram e que tiveram a oportunidade de conhecer mais de perto o nosso povo são unânimes em louvar essa característica genuinamente e, quem sabe, exclusivamente nossa: a capacidade de conviver pacificamente com uma religiosidade que prima pela diversidade. Basta lembrar as inúmeras vezes em que os franceses Roger Bastide e Pierre Verger teceram loas a essa peculiaridade brasileira, para citar apenas dois. Não foi à toa que os autores da reportagem da ISTO É aqui mencionada escolheram exatamente a menção a essa característica para abrir o texto.

Não consigo entender por que os fiéis de algumas religiões sentem uma necessidade tão intensa de fazer proselitismo. O pior, porém, é que esse proselitismo muitas vezes atinge as raias do absurdo, beirando a violência explícita e gratuita. Isso eu nunca vou aceitar. Custa-me admitir que um ser humano possa agredir outro em nome de Deus. Na verdade, essas pessoas, penso, estão absolutamente equivocadas. Elas falam não em nome de Deus, mas do seu Deus, que para elas é o único verdadeiro, como se Deus pudesse ser privatizado e fosse propriedade exclusiva de uma religião. Pior é ouvir algumas dessas pessoas abrirem a boca nos púlpitos para falar de amor e misericórdia. Contradição das contradições, absurdo dos absurdos.

Sou católico porque, depois de muita luta comigo mesmo, concluí que essa é a religião que, por questões exclusivamente pessoais, mais responde à minha busca e aos meus anseios espirituais, em que pese todas as suas deficiências e críticas que eu lhe possa fazer, como, de mais a mais, eu faria a qualquer outra religião, uma vez que nenhuma é perfeita, pois todas são criações humanas e, como tal, falíveis.

O catolicismo que professo, porém, não constitui motivo para que eu não me sinta absolutamente à vontade e em casa quando vou a um centro de umbanda. Aliás, uma das pessoas mais espiritualizadas e generosas que tive o privilégio de conhecer ao longo das minhas andanças pelas religiões foi exatamente um umbandista que já não se encontra entre nós, pois, como diria o professor Ismael Pordeus, se encantou: Babá Didi. Aprendi muito nas minhas conversas com Babá Didi e ainda hoje sinto falta de sua luminosa presença entre nós.

Preciso afirmar isso aqui porque sei que entre os católicos – e conheço alguns que assim procedem – há não poucos que desperdiçam o tempo que poderiam empregar em atividade mais nobre, demonizando as religiões afro-brasileiras. Para mim, tal postura é inconcebível, posto que absolutamente incompatível com uma prática religiosa que tem como princípios basilares o amor e a compaixão.

Para concluir, quero apenas registrar aqui que me envaidece e me faz sentir imensamente feliz ter nascido neste país, pois em outro onde imperasse a intolerância religiosa eu não conseguiria viver. Não sei se tenho uma missão na vida, mas caso tenha uma, gostaria que essa fosse a de disseminar a tolerância e respeito entre as religiões e seus adeptos. Tivesse eu condições e iniciaria no Brasil uma cruzada nacional movida por este objetivo

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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