Quanto ao Jesus histórico, é claro que dele não sei mais do que qualquer um, quer dizer, quase nada. Se confiamos, por falta de melhor, nos Evangelhos, temos primeiro a ideia de um exaltado simpático, de uma espécie de pregador itinerante, evidentemente sincero, evidentemente desinteressado, que anunciava a todos a iminência do Juízo Final ou do fim dos tempos… Que se tenha enganado está bastante claro, e não tem grande importância. Quero crer que ele compreendeu, no meio do caminho, que acabou por compreender que o essencial não estava aí: que o Reino de Deus não era o que deveria advir, mas o que já havia começado. Não somente “muito próximo”, como diz o Evangelho de Marcos, mas aqui mesmo. Não vindouro, mas presente, mas para viver, aqui e agora para viver. Não prometido, mas dado. Objeto não de esperança mas de amor, não de fé mas de conhecimento. “Quero crer”: quer dizer, não sei nada disso. Mas esse é o Cristo a quem amo, aquele que criei pouco a pouco para mim, aquele que me acompanha, e o único que me esclarece. É o Cristo de Spinoza, disse-o, ou um Cristo spinozista, e isso dá no mesmo. É o Cristo de Alain: a criança nua, entre o boi e o burrico, o espírito crucificado, entre dois ladrões. É, pois, o Cristo de todo o mundo – o Presépio, o Calvário – , o dos mitos e das lendas, o único que conhecemos, no fundo o único que importa, mas liberto da religião, mas não prometendo nada mais do que tudo, ele também – como os gregos, como os verdadeiros mestres -, e não outro reino além deste mesmo onde já estamos… Este Cristo, mesmo heterodoxo (mas que vale a doxa nesses domínios?), mesmo inventado (como proceder de outra maneira?), não deixa, porém, de se relacionar com os textos do Novo Testamento, ao menos com alguns deles. Por exemplo, no Evangelho segundo São Lucas: “Tendo-lhe os fariseus perguntado quando viria o Reino de Deus, ele lhes respondeu: ´O Reino de Deus não vem como um fato observável. Não se dirá: ´Aqui está´ ou ´Lá está`. Pois o Reino de Deus está em vós” (entos humôn), ou “ente vós”, ou “no meio de vós” (todas essas traduções, embora menos evidentes, são aceitáveis), ou talvez, melhor ainda, e como dizia o Evangelho de Tomé, o Reino de Deus está ao mesmo tempo “em vós e fora de vós”. É o que Guillemin, em L´affaire Jésus, denominava com razão “a grande revelação-divulgação que o nazareno trazia”, da qual eu diria de bom grado que põe fim, para mim, a qualquer religião revelada, e mesmo a qualquer religião. Se o Reino está em nós, e se estamos no Reino, para que serve a fé e a esperança? Não se deve crer em mais nada; deve-se conhecer tudo. Não se deve ter esperança em mais nada; deve-se amar tudo. Isso coincide com a lição dos místicos, em todos os países. Por exemplo, Nagarjuna: “Enquanto fazes uma diferença entre o nirvana e o samsara, estás no samsara”. Meu Cristo interior diria igualmente de bom grado: “Enquanto fazes uma diferença entre o Reino e este mundo de miséria, estás neste mundo de miséria”.  É a Boa Nova dos Evangelhos, tais como os leio: já estamos salvos. Mas singularmente rude: já que nada mais deixa para ter esperança! Suporta-a quem pode, e quase não o podemos. A esperança é mais fácil; a religião é mais fácil. Mas “cumpre ater-se ao difícil”, como diz Rilke: isso indica o caminho, onde já estamos, onde avançamos como podemos, no cansaço, no sofrimento, na angústia – na alegria por vezes. Foi isso a que chamei a sabedoria do desespero, a que Cristo antes chamaria a sabedoria do amor, e é ele, com certeza, que tem razão. Nada para crer, nada para ter esperança. Não há outra salvação senão viver, não há outra salvação senão amar: o Reino é aqui na terra; a eternidade é agora.

André Comte-Sponville

[Comte-Sponville, André. Bom dia, angústia! Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. – São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 143.]

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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