Este fato, este uso do direito de resposta que está acontecendo aqui, abre um capítulo novo na história da defesa dos direitos humanos, da dignidade humana no Brasil. As leis brasileiras preveem o direito à liberdade religiosa, o direito de não sofrer discriminações, agressões por motivo de convicção religiosa, e nós estamos vendo que já existem os caminhos para garantia desse direito e para punição dos que não o respeitam. De maneira que, por tudo isso, eu estou convencido de que nós estamos começando, efetivamente, um capítulo novo na história da defesa dos direitos humanos no Brasil.

Dalmo Dallari

[Fala de Dalmo Dallari no programa Diálogo das religiões-Direito de resposta. Dalmo Dallari é um dos mais renomados juristas brasileiros. Em 1996, tornou-se professor catedrático da UNESCO na cadeira de Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância, criada na Universidade de São Paulo.]

Quero iniciar este texto deixando claro que, se existe uma coisa com que não pactuo, é a intolerância religiosa. Sei que é um paradoxo, mas, neste caso, sou intolerante. Considero a religião uma escolha tão pessoal, algo de foro tão íntimo, que não dou a ninguém o direito de doutrinar quem quer que seja, especialmente quando essa doutrinação implica em denegrir outras religiões. Motivado por esse sentimento foi que assisti, com imenso prazer, o programa gravado para ir ao ar como direito de resposta concedido pela Justiça Federal em ação movida pelo Ministério Público, pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT e pelo Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-brasileira – INTECAB, contra a Rede Record de Televisão. O direito de resposta foi concedido devido aos reiterados ataques feitos pela emissora às religiões afro-brasileiras.

Tive acesso ao programa graças ao professor Ismael Pordeus, que postou o link no facebook. Gravado na PUC-SP, o programa, conduzido de forma brilhante por Maria Ceiça e Toni Garrido, representou uma rara oportunidade de exemplo de convivência pacífica entre os diferentes credos religiosos professados em solo brasileiro. Contando com a participação de representantes de diversas religiões, do Ministério Público e de renomadas autoridades e estudiosos do assunto, vários deles expressaram seus pontos de vista sobre a diversidade religiosa ao longo dos sessenta minutos de apresentação.

A Dra. Eugênia Fávera, uma das representantes do Ministério Público Federal na ação, indagada sobre o que o governo poderia fazer para coibir a intolerância religiosa, assim se pronunciou sobre a questão:

O governo brasileiro deveria garantir que os princípios constitucionais garantidores da liberdade de crença, da liberdade de expressão, fossem respeitados. Esse direito de resposta foi concedido porque a Justiça Federal brasileira fez valer esses direitos, reconhecendo que tem havido uma ofensa reiterada às religiões de matriz africana. Essa ação baseia-se em princípios constitucionais, portanto não induz em censura. É uma celebração do direito à democracia, do

direito de viver num estado democrático de direito. Somos diferentes, somos diversos, mas somos iguais em direitos e no exercício da cidadania.

Dom Anselmo Nemoyane, monge beneditino, ao ser instado a expressar seu ponto de vista, afirmou: “O conflito que há entre diferentes grupos religiosos advém de um certo desconhecimento, de uma certa ignorância entre as diferentes tradições religiosas. Então eu acho que a promoção que as mídias podem trazer, sobremaneira a televisão, é esse conhecimento dos diferentes grupos religiosos. Eu acho que isso contribui grandemente para a diminuição do conflito entre esses diferentes grupos de religiosos.

O Reverendo Elias A. Pinto, da Igreja Presbiteriana Independente, iniciou sua fala de forma muito bela com as seguintes palavras: “Minha saudação de paz a todos os brasileiros, porque este momento é um momento do povo brasileiro. A seguir, salientou a importância de que a mídia promova a unidade tanto planetária quanto entre os brasileiros: “Portanto, é muito importante que a gente comece a rever os nossos valores pessoais, comunitários e religiosos, para que a gente possa ver se realmente estamos oferecendo uma contribuição à própria cultura da mídia brasileira no sentido de que haja paz entre todos os povos, haja paz entre todos brasileiros e haja paz entre as religiões que habitam o nosso país”. E concluiu, enaltecendo a importante contribuição da comunidade afro para o nosso país: “Gostaria de dizer que é muito importante a contribuição que a comunidade afro oferece ao Brasil, que é muito importante que o Brasil ofereça à comunidade afro também a oportunidade de seus valores serem expressos positivamente para que a gente tenha verdadeiramente uma integração da nossa história e de tudo que significa ser brasileiro, no momento que nós estamos vivendo, de início de terceiro milênio”.

Quanto às próprias religiões afro-brasileiras, coube ao Pai Francelino de Shapanam, coordenador da INTECAB-SP, sintetizar o que, suponho, seja o anseio de todos os representantes da comunidade que estiveram presentes à gravação do programa, e que lotaram o auditório:

O que nós queremos tão somente é o respeito para conosco. É uma pena e é rara a oportunidade que nós temos de usar a mídia, e queremos fazer isso duma maneira didática, mostrar que nós não queremos briga, que nós não queremos guerra. Nós queremos viver num país em que todos possam andar na rua com seus trajes, com seus dogmas, com as suas insígnias e serem respeitados de igual para igual. Nós não queremos ver nossos templos invadidos, nós não queremos ver nossas crianças discriminadas. O olhar que neste momento as religiões pedem é um olhar de respeito. Aquela raça acima de tudo que trouxe a nossa religião e que ajudou a construir o Brasil, que continua construindo esse país e que continua sendo discriminada. É o momento de nós termos direito a voz, essa voz que sempre foi negada. Então nós estamos aqui para dialogar e mostrar que nós somos religião que acreditamos no diálogo, acreditamos que podemos viver pacificamente com todos.

Passei a maior parte da minha manhã de ontem assistindo o programa e transcrevendo trechos de falas para este texto. Por diversas vezes me levantei da cadeira em que me encontrava para comentar trechos com Naza e Indira, instando com elas para que o assistissem depois. Fiquei, de fato, maravilhado com a abrangência do programa Diálogo das religiões. Meu desejo, disse para minha esposa, era que ele tivesse uma ampla repercussão. Que fosse mostrado em grupos de estudo, em escolas, universidades, de forma que se pudesse travar na sociedade brasileira um amplo debate sobre o assunto.

Quase no final do programa, a Yalorixá Sandra Epega de Xangô, ao se reportar à ética e moral que fundamentam as religiões afro-brasileiras, discorreu sobre as três importantes virtudes que vêm do Orum, o céu dos Orixás, nas quais se assenta tal ética: a alegria, o conhecimento que leva à sabedoria e, por fim, a paciência, chamada por eles mãe paciência. Ela se expressou de forma tão bela, que preferi não transcrever aqui suas palavras para não diminuir-lhes a força, deixando esse prazer para ser fruído pelos que se dispuserem a ver o Diálogo das religiões.

A maior emoção, porém, ficou reservada para a conclusão do programa, quando Pai Francelino de Shapanam conduziu uma bela oração que contou com a participação de todos os presentes. Um momento raro e mágico: pessoas dos mais diferentes credos e religiões orando juntas, irmanadas num só coração. Nos últimos segundos, a câmera enfocava um dos sacerdotes afro enxugando as lágrimas com um lenço. Talvez a paz seja possível.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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