Acho que não consigo preservar minha saúde e meu ânimo se não passar quatro horas por dia, pelo menos – e geralmente é mais do que isso -, vagando através das matas, dos morros e dos campos, absolutamente livre de todos os compromissos terrenos. Você pode propor um centavo para ler meus pensamentos, ou até mil libras. Quando às vezes lembro que os artesãos e os negociantes ficam em suas lojas não só toda a manhã, mas toda a tarde também, sentados de pernas cruzadas, tantos deles – como se as pernas fossem feitas para se sentar sobre elas e não para ficar de pé ou caminhar sobre elas -, acho que merecem algum crédito por não terem cometido o suicídio há muito tempo.

Henry David Thoreau

[Thoreau, Henry David. Caminhando. Tradução de Roberto Muggiati. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 71. (Sabor literário)]

Aprendi a admirar Henry David Thoreau desde que li Walden ou a vida nos bosques, livro de sua autoria, publicado em 1854. Recentemente, tive oportunidade de adquirir uma outra obra sua. Desta feita, um pequeno livrinho, que, na verdade, fora originalmente um texto publicado postumamente na revista The Atlantic Monthly. O livreto, intitulado Caminhando, trata, como o próprio título sugere, da arte de caminhar, uma das grandes paixões de Thoreau.

Muito antes da prática do cooper se tornar moda, ele já defendia a importância do ato de caminhar.  Para Thoreau, porém, caminhar envolvia muito mais do que um simples exercício com o objetivo de manter a saúde. É particularmente interessante um trecho do texto em que ele fala da necessidade de se estar totalmente presente quando se caminha. Lendo as palavras de Thoreau, é inevitável a associação com a prática Zen da meditação em movimento. Diz o autor:

Claro que não vale de nada dirigir nossos passos para os bosques se eles não nos levam para lá. Fico alarmado quando acontece de eu ter caminhado uma milha bosque adentro, sem entrar lá em espírito. Na minha caminhada vespertina de bom grado me esqueceria de todas as ocupações matutinas e de minhas obrigações para com a sociedade. Mas eventualmente ocorre que não consigo me desvencilhar tão facilmente da cidade. A ideia de algum trabalho me passa pela cabeça e não estou onde o meu corpo está – perco a noção das coisas. Em minhas caminhadas eu pretendo voltar aos meus sentidos. Que tenho a fazer no bosque, se estou pensando em algo fora do bosque? (p. 74).

Isso que Thoreau chama de voltar aos meus sentidos é, nada mais nada menos, que a indispensável atitude de estar o máximo presente naquilo que se faz, tão cara ao Zen-budismo. É uma postura que tem por objetivo levar a pessoa a centrar-se em si mesma. Esse centramento é especialmente necessário para que não nos afastemos daquele que é o nosso caminho, o nosso itinerário pessoal. É muito curioso, a propósito disso, o paralelo que Thoreau estabelece ente o caminho exterior e o caminho interior:

O que torna tão difícil às vezes decidir para onde vamos caminhar? Acredito que existe um magnetismo sutil na natureza que, se cedermos inconscientemente, nos dará a direção certa. Não nos é indiferente para onde caminhamos. Existe um caminho certo; mas estamos muito sujeitos, por negligência e estupidez, a tomar o caminho errado. Gostaríamos de fazer aquela caminhada, jamais feita por nós neste mundo real, que é perfeitamente simbólica da trilha que adoramos seguir no mundo interior e ideal; e, às vezes, sem dúvida, achamos difícil escolher nossa direção, porque ela não existe ainda distintamente em nosso pensamento (p. 82).

Nascido em Concord, Massachetts, em 12 de julho de 1817, o ensaísta e poeta Henry David Thoreau quase não se afastou da região natal ao longo de sua vida. Quando menino, costumava caçar, como todo garoto do interior americano, mas logo desenvolveu interesse e capacidade de estudar a natureza, principalmente em sua relação com o ser humano. Trabalhou na fábrica de lápis de seu pai antes de se tornar professor, formado em Harvard. Aos 18 anos, contraiu tuberculose, contra a qual lutou por toda a vida e de que morreu em 1862. Em 1849 publicou A desobediência civil, livro que exerceu grande influência sobre Mahatma Gandhi, no qual se inspirou para levar a efeito seu movimento de não violência, quando da luta pela independência da Índia. Em 1854, publicou Walden ou A vida nos bosques.

A edição de Caminhando, aqui comentada, trás, além do texto de Thoreau, dois excelentes ensaios sobre o autor, escritos por Roberto Muggiati: Thoreau, o caminhante do futuro e A arte de andar. Neste último, posto no livro à guisa de Apresentação, propõe Muggiati, inspirado na leitura de Thoreau:

Ao caminhar, não se corre só atrás de saúde, ou de longevidade. É uma viagem filosófica também. Como dizia o poeta espanhol Antonio Machado, “caminante, no hay caminho/ se hace caminho al andar”. Por isso, coloque um pé metodicamente adiante do outro, siga em frente, e viva (p. 43).

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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