Acho realmente que a arte nos escolhe, conforme a nossa personalidade. Escolhi a literatura para expressar-me e ela, por sua vez, também me escolheu; das artes, a que menos precisa de plateia, porque encontra seu objetivo quando um leitor a lê. O próprio escritor se insere na narrativa como mais um personagem e é impressionante a capacidade de deslocamento que ele tem para versar sobre outras realidades; muitas vezes, transportando-se para situações, épocas ou lugares que não conheceu de fato e descrevê-los com propriedade. Eu mesma, num de meus livros, vivi a maternidade com uma intensidade tal que me pareceu real, uma experiência que a Providência me negou, mas que a literatura me possibilitou. É a força da palavra literária e a forma como o escritor a usa, que torna esta mágica possível, permitindo que a literatura sobreponha-se à experiência de vida.

Íris Cavalcante, pela boca de Drina, personagem de O Sobrevivente

[Cavalcante, Íris. O Sobrevivente. – Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010, p. 43.]

Sábado pela manhã liguei par a livraria Cultura a fim de me informar sobre a disponibilidade de um livro que almejava adquirir. Como a informação da vendedora foi que dispunham do mesmo para aquisição, pedi que me reservassem um exemplar. Por volta das onze horas, depois de pegar minha encomenda no balcão de reservas, sentei-me a uma mesa do café e, ali mesmo na livraria, iniciei minha exploração do volume recém-adquirido. Em pouco tempo já me sentia confortável em companhia de Drina, a personagem autora, e de seu irmão Bento, o herói de uma epopeia da qual eu começava a participar na condição de leitor.

No dia seguinte, domingo, às 23 horas, eu entrava na cozinha de meu apartamento e falava pra Naza:  “Realizei uma façanha que há tempos eu não conseguia: acabo de concluir a leitura de um livro de 214 páginas iniciada ontem na livraria Cultura”. De fato, perdi um pouco meu pique de leitura e, de uns tempos pra cá, tem sido difícil me dedicar ininterruptamente a um único livro até concluí-lo, coisa que eu fazia antes sem o menor esforço. A leitura do livro adquirido no sábado, porém, me proporcionou essa oportunidade.

Narrado na primeira pessoa, O Sobrevivente, livro de autoria de Íris Cavalcante, tem como cenário a cidade de Baturité, mas também Fortaleza, Israel e o Rio de Janeiro. O romance tem como personagens principais Maria Alexandrina de Sá Albuquerque, tratada por Drina pelos familiares e amigos, e seu irmão adotivo, Bento de Albuquerque.

Uma das peculiaridades do romance está em que Drina, na condição de escritora, ao longo da narrativa vai entremeando algumas interessantes reflexões sobre o próprio ato da escrita, como quando afirma:

Estas angústias, incertezas e expectativas, sempre estiveram implícitas em minha obra, na composição de meus personagens e no dorso da narrativa. Toda obra de ficção traz inevitavelmente o perfil psicológico e a experiência de vida de seu autor. Cheguei a esta conclusão após muitos anos de literatura, lendo grandes obras e grandes autores que me fizeram montar o alicerce que me transformaria num deles. Cada escritor traz em si uma originalidade e estilo próprios. Embora alguns digam a mesma coisa, cada um a diz de forma diferente (p. 46).

Num outro trecho, ao se referir às dificuldades enfrentadas por ocasião da revisão gramatical de seus livros – que ela própria prefere fazer, ao invés de delegar a tarefa a um revisor -, credita tais dificuldades à tirania dos tempos e concordâncias verbais da língua portuguesa (p. 135).

Paralelo a questões de cunho existencial, presentes no romance, nota-se na autora o interesse em fazer também uma crítica de cunho social. Talvez quanto a esse aspecto, a figura mais emblemática seja o próprio Bento Albuquerque, nascido no sertão nordestino. Bento fica órfão ainda na infância, ao ser abandonado pela mãe que, não suportando tanta miséria, larga o filho e se manda não se sabe pra onde. Ao narrar o episódio do seu encontro com Bento, Drica traz a lume um dos adágios a que seu pai sempre recorria em momentos os mais diversos – os maravilhosos adágios tão comuns no sertão nordestino, e que se farão presentes no romance do começo ao fim: Em terra sem vianda, a fome é quem manda!

A propósito da temática social presente no romance O Sobrevivente, penso que não se pode considerar mera coincidência a localização da casa onde a narrativa se inicia. Diz a autora:  A frente era voltada para a rua 7 de setembro e a entrada dos fundos para a rua 15 de novembro (p. 21). Levanto a hipótese de que essa localização – que remete a dois importantes momentos históricos e, por que não dizer, fundadores do nosso país -, aparece aí como metáfora, como se uma parte da própria nação brasileira, o nordeste, estivesse simbolizado naquela casa do interior cearense.

Bento, como personagem principal, é a figura mais representativa de toda essa situação em que boa parte dos nordestinos ainda se vê imersa. Ele nem mesmo registrado era, como se oficialmente não existisse, a exemplo de tantos outros Bentos espalhados pelos rincões do nordeste: “Bento não fora registrado antes, ele não era uma estatística oficial até então” (p. 23).

Em que pese, porém, a sorte adversa e os reveses que terá que enfrentar ao longo da vida, há  uma força maior que não deixa Bento perecer. E aqui encontramos outro aspecto marcante de O Sobrevivente: as referências à fé, à oração, a Deus, enfim, salpicadas ao longo da narrativa, expressão de uma das características basilares da nossa nordestinidade: o misticismo  religioso. É, provavelmente, o que leva Drica, a personagem autora, a dizer:

Deus não desistiu de Bento. Contrariando todos os pressupostos, Deus não desistiu dele, que por sua vez, agarrou-se com unhas e dentes a cada nova chance que a vida lhe proporcionava (p.21).

Íris Cavalcante, a autora de O Sobrevivente, é poetisa e romancista cearense, tendo publicado antes os livros: Palavras e Poesias,em 2003, e O Caminho das Letras, em 2006.

O Sobrevivente, livro que li com encanto e interesse da primeira à última página, tem muitos outros aspectos que poderiam e mereceriam ser destacados e analisados, como, por exemplo, o desfecho, que, ao final, toma o leitor de surpresa. Mas não sou crítico literário, a quem cabe descer a uma maior profundidade na apreciação da obra. O que escrevi aqui são apenas observações e reflexões de um leitor comum, apaixonado por livros e leitura.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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