Há uma imagem para a literatura: a do sujeito solitário que, acomodado em sua poltrona, a atenção voltada para o livro aberto, lê em recolhimento e em silêncio. Imagem serena e íntima, que contraria a turbulência e o desnudamento que vigoram no mundo de hoje. Lugar da contemplação, do resguardo e da volta a si, cujo valor aumenta na medida em que a profundidade do mundo – esse mundo de superfícies velozes, de janelas que se abrem e fecham e de imagens loucas – cada vez mais diminui.

José Castello

[Castello, José. A literatura na poltrona. – Rio de Janeiro:  Record, 2007, p. 64]

Quando assisti, na televisão, a uma entrevista do jornalista e escritor José Castello, na Feira de Literatura de Parati, decidi que procuraria imediatamente o livro de sua autoria A literatura na poltrona: jornalismo literário em tempos instáveis. Foi o que, de fato, fiz. Como não o encontrasse em Fortaleza, encomendei-o ao Vladimir, da livraria Arte e Ciência. Tão logo o recebi, me lancei à leitura. Valeu a espera.  Gostei tanto que, pouco mais de um mês depois, já se enfileiravam na minha estante seis outros livros do autor. O mais recente, adquirido também mediante encomenda, recebi a semana passada: Na cobertura de Rubem Braga.

A literatura na poltrona é composto de quinze ensaios ao longo dos quais José Castello reflete sobre literatura, livros e autores. São reflexões provocativas e instigantes, emanadas de um jornalista que teve o privilégio de conversar – e que conversas! – com escritores da mais alta estirpe, tanto brasileiros quanto estrangeiros. No seu rol de entrevistados constam nomes como Clarice Lispector – como o invejo por isso! -, João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst, Manoel de Barros – é inacreditável, mas ele conseguiu essa façanha -, Nelson Rodrigues, Adolfo Bioy Casares e José Saramago, só para citar alguns.

Dentre os diversos temas literários abordados por Castello, inclui-se o difícil mister de biógrafo. Sobre o assunto, pode falar com conhecimento de causa. É de sua autoria o livro O poeta da paixão,  biografia de Vinícius de Moraes. No ensaio intitulado Biografar ou ressuscitar?, afirma:

Vivemos um tanto às escuras; nossos sentimentos nem sempre são claros e nossas decisões, seguras; tentamos fisgar os atos com palavras, mas elas se mostram insuficientes; vivemos, mas é a vida também que nos vive. Além disso, o homem contemporâneo leva uma existência em fragmentos, que lhe fornece uma imagem de si, e dos outros, cada vez mais impalpável. É cada vez mais difícil fixar uma imagem nítida, mesmo do mais simples dos homens. Se pudessem viver e pintar em nosso tempo, os grandes artistas do renascimento enlouqueceriam (p. 167).

O ato da escrita e da leitura, por sua vez, são temas onipresentes, que perpassam a quase totalidade- se não a totalidade – dos ensaios. No segundo, que dá nome ao livro, escreve Castello, a propósito da leitura:

A leitura é uma experiência misteriosa, de que participam não só o texto que se lê, mas a imaginação, a memória, a história, a sensibilidade de quem lê. Na “decifração” de um escritor, mesmo entre especialistas, não entram em jogo apenas a bagagem literária, a erudição acumulada e a perícia técnica, mas também o rasto existencial. Cada um lê com o que tem, lê com o que é, lê como pode. Não existe leitura perfeita, nem completa; muita coisa, mesmo para os leitores treinados, sempre fica de fora. É esse aspecto inesgotável da literatura que lhe confere um caráter mágico. Não é preciso fazer “realismo mágico”, ou “literatura fantástica” para brincar com fogo (p. 37).

Mais adiante, depois de afirmar que “Toda literatura é feita de mal-entendidos”, ou seja, “de imagens trocadas, de defeitos, de imprecisões, de suposições”, conclui, no parágrafo final:

Tudo aquilo que julgamos “entender bem”, quer dizer, dominar e possuir, está fora do literário. A leitura de um grande livro mexe com o que temos de mais instável e de mais sensível, pois joga com o inacessível e o remoto. Não é fácil ler um grande livro, mas é inesquecível. Que a literatura volte para a poltrona! E que, expostos à sua força, nos sobre coragem para suportar, mas também sorver, a grande devastação (p. 38).

A literatura na poltrona é  um convite a que o leitor, instalado confortavelmente numa macia poltrona, se deixe quedar na agradável companhia de José Castello em uma deliciosa conversa sobre a leitura e a escrita, mediada por livros e autores.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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