Eu quis fazer de minha vida um laboratório.
Inventei (?) muitas fórmulas.
Experimentei todas.
Algumas foram bem-sucedidas.
De outras, ressurgi como Fênix.


Uma certeza firmei:
o que vale não é o que está explícito.
Para se ver claramente,
é preciso tirar todos os óculos
e andar nas entrelinhas.
Goretti Moreira
[Moreira, Goretti. Entrelinhas. – Fortaleza: Premius, 2012, p. 101.]

Imagine abrir um livro e encontrar, logo na primeira página, promessa da autora de que vai dizer tudo o que pensa e sente. Pois é o que faz Goretti Moreira no poema Abertura, que, conforme sugere o próprio título, abre o seu recém-lançado Entrelinhas:

Agora vou dizer tudo o que penso,/ tudo o que sinto,/ tudo o que está engasgado/ desde o princípio./ Agora decidi seguir/ as regras de Oscar Wilde.  //  Nada! Nada vai deter meu grito. /Faço questão de deixá-lo escrito,/ e o medo de ser maldito/ banido foi, sim, eternamente! (p. 13)

O livro é dividido em quatro partes, tendo como referência os quatro elementos: Água, Terra, Fogo, Ar. Ao longo da obra, a autora mostra o domínio que tem da arte poética ao passear com desenvoltura por estilos diversos, como o soneto, a poesia concreta e até o haicai. O haicai, por sua concisão, é, provavelmente, uma das formas poéticas mais difíceis. O único, porém, publicado em Entrelinhas, é de tal beleza que valeria por uma centena:

Quis reter o azul/ que no mundo inteiro há:/ vi teu olho nu. (p. 17).

Em Fonte da poesia, com muita criatividade vale-se  da metalinguagem para construir o poema: Com versos decassílabos prostrei/ minha alma ao sabor dos teus caprichos./ Das rimas mais sublimes fiz a lei/ para atender de pronto os teus feitiços.  //  Quarteto por quarteto arquitetei,/ sonhando construir um belo ninho/ pra te guardar do mundo. E constatei/ que da poesia és fonte, fim, caminho.  //  Me perguntei pra que tanta escansão,/ se um sorriso teu cobre a canção,/ e desisti de metro tão severo  //  Por outro que exalte este intento:/ de ostentar sem medo o sentimento/ que arde no meu estro mais sincero. (p. 19).

No belo poema Lembranças percebe-se a evocação do paraíso perdido da infância:
E ali não tinha mais/ o parque,/ a roseira,/ o pé de algaroba./ Nem andorinhas em revoada,/ nem viola em noite enluarada.  //  A preta misteriosa/ não tocava mais o sino./ A hora sagrada era sem hino.  //  Calçadas desertas/ calavam histórias de Trancoso/ ou de evento milagroso.  //  O silêncio tomou a vez das cirandas,/ das rodas de crianças,/ dos folguedos e das danças.  // À noite… não mais o alto-falante./ Cupido fugiu da pracinha,/ arrenegou casais./ E o tempo roubou a rede quentinha/ que embalava sonhos angelicais. (p. 47).

Ao tom bucólico e nostálgico desses versos, que remetem à infância vivida em uma pequena cidade do interior encravada no sertão caririense, contrapõem-se outros que, ao falar da cidade que acolheria a autora a partir do início da idade adulta, deixam transparecer um misto de admiração e desencanto. Essa outra cidade aparece como uma metáfora de todos nós, adultos desencantados com o mundo e com a vida. Atente-se, a propósito, para a palavra final do poema:

Mira/ do mirante/ tua cidade,/ Fortaleza. Que beleza:  // tuas ruas/ tuas praias/ tuas praças/ tuas danças/ esperanças…  //  Mira/ do mirante/ tua cidade,/ Fortaleza./ Que tristeza:  //  teus asfaltos/ teus assaltos/ tuas vielas/ tuas favelas/ Ah! Destino…  (p. 57).

Conforme o esboço biográfico em que se apresenta aos leitores, “Goretti Moreira nasceu na cidade de Farias Brito-CE, quando a pracinha, que abrigava um pequeno parque e um enorme pé de algaroba, ainda existia. Reside em Fortaleza-CE, desde 1980. É servidora pública, crê na Santíssima Trindade e ama literatura. Eros e Psique, de Fernando Pessoa, é seu poema preferido”.

O professor Antônio Brandão de Macêdo, com muita propriedade, abre com as seguintes palavras o texto que escreveu, à guisa de Apresentação, para Entrelinhas: “Oratur fit, poeta nascitur”, diziam os antigos: “o orador se faz, mas o  poeta já nasce feito”.  Lembrei as palavras do professor quando li o poema Sina:

É! Meus versos são forjados/ num cadinho/ onde minha alma/ alquimicamente/ se transmuta.   //  E as lágrimas lançadas/ no tecido/ fertilizam,/ generosamente,/ sem angústia.  //  Minha sina está  traçada/ pelas linhas/ desta escrita/ impiedosamente/ absoluta. (p. 31).

Ao ler esse poema, tudo o que se pode almejar é que Goretti responda generosa e prodigamente à invejável sina que Deus lhe destinou: a de ser poeta, com isso proporcionando a todos os seus leitores o reencantamento do mundo, reencantamento este que somente os versos de uma poeta podem proporcionar.

Ao expressar este desejo, não nos resta dúvida de que ela haverá de realizá-lo, pois, embora tenha aberto Entrelinhas com uma promessa, temos a mais absoluta certeza de que, em hipótese alguma, a terá cumprido. Ao dizer que falaria tudo o que pensa e sente,  Goretti, com a sutileza e perspicácia próprias dos poetas, quis apenas atrair o leitor, sem que ele o percebesse, para os meandros das entrelinhas em que ela belamente tece seus poemas, deixando-o, por fim, com aquele gostinho de quero mais, afinal, poeta algum jamais dirá tudo o que pensa ou sente.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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