Fogo, Anaïs NinVivo em uma espécie de fornalha de afetos, amores, desejos, invenções, criações e delírios. Sou incapaz de descrever minha vida por meio de fatos porque o êxtase não está nos fatos – no que acontece ou no que faço -, mas no sentimento que desperta em mim e no que se cria a partir de tudo isso… Quer dizer, eu vivo ao mesmo tempo em uma realidade física e metafísica…

[Nin, Anaïs. Fogo: de um diário amoroso: o diário completo de Anais Nïn, 1934-1937 / Anais Nïn; com introdução de Rupert Pole e notas biográficas e anotações de Gunther Stuhlmann; tradução de Guilkherme da Silva Braga. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2011. Citado por Rupert Pole na Introdução, p. 9.]

Ela escreveu críticas, ensaios, ficção e diários, magníficos diários que, no final da vida, atingiram a soma de dezenas de volumes. Maravilhosos e incendiários diários como o que tenho em mãos e do qual extraio alguns trechos para este texto. Refiro-me a Anaïs Nin, nascida em Neuilly, arredores de Paris, em 21 de fevereiro de 1903 e falecida em Los Angeles, nos Estados Unidos, em 14 de janeiro de 1977. 

O volume que estou lendo cobre os anos 1934 a 1937. Na página 15, escreve:

Café da manhã no restaurante mal-iluminado do hotel. Dou a ele um resumo das principais notícias do dia. Ou melhor, faço justaposições engraçadas, recorto frases e arranjo-as de modo inusitado. O efeito é hilariante. Passo as notícias por baixo de sua porta enquanto ele examina um paciente. Assim que o paciente vai embora, ele lê. E vem para o meu quarto, rindo (p. 15).

O ele a quem se refere a autora é ninguém menos que Otto Rank, um dos psicanalista que fizeram parte do grupo que conviveu diretamente com Freud. Mais adiante, ao falar de Hugh Guiler, o banqueiro com quem se casou em 1923, e Henry Miller, seu amigo e amante da vida inteira, diz:

O cerne da minha vida é uma situação trágica e profunda que sou incapaz de enfrentar. Não posso abandonar Hugh. Não posso magoar Henry. Não posso magoar Huck. Pertenço a todos eles” (p. 23). E completa, mais adiante: Laços perenes. Laços inquebrantáveis. Só consigo acrescentar, expandir. Dissolver, afastar, é impossível (p. 24).

Sentir-se una, para ela, era quase uma impossibilidade: Desejo a unidade, mas sou incapaz de atingi-la. Interpreto mil papéis (p. 39). Resta-lhe, pois, a inevitável conclusão:  Ser eu mesma  é isso, é estar dividida. E não se pode estar dividido sem tragédia (p. 38).  

Viver implicava aceitar a vertigem de um infindável estado de êxtase e embriaguez: A verdade é que sinto um êxtase profundo, uma embriaguez interior permanente (p. 42).

Uma mulher, enfim, que trazia em si um vulcão, não diríamos pronto para entrar em erupção, mas, na verdade, em erupção constante, vomitando lava por todos os lados:

Deslizando como uma enguia pelos obstáculos. Mas eu dou vida. Raras vezes tive a morte nas mãos. Ainda assim, sou capaz de destruir. Vida. Fogo. Estando em chamas, incendeio os outros. Nunca a morte. Fogo e vida. Le jeu. [O jogo. Em francês, no original] (p. 459).

Ler os Diários de Anaïs Nin é uma oportunidade para sentir um pouco as chamas que evolam das páginas que relatam a intimidade de uma mulher que levou às últimas consequências essa experiência  vertiginosa a que chamamos vida.   

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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