Na circular que abre um dos treze livros que compõem a edição das “Cartas Circulares, Interconciliares e Pós-Conciliares” de Dom Hélder Câmara, afirma o recém-empossado Arcebispo de Olinda e Recife: “Alegra-me pensar que, com a graça de Deus, dei testemunho cristão, fui Bispo, estive à altura da exigência histórica, procurando não trair e não decepcionar milhares de cristãos, com olhos e corações voltados para a circunstância providencialíssima da posse do Arcebispo da cidade-chave do Nordeste-chave” (Circulares interconciliares, v. 2., t. 1., p. 3.)

Ao ser investido no cargo, poucos dias depois da implantação do regime militar no Brasil, começava para Dom Hélder, provavelmente, a grande missão de sua vida. A circular acima citada, em que relata a investidura, dá bem uma ideia do projeto que o Dom, como era carinhosamente chamado e que usava para assinar as suas missivas, levaria a cabo nos anos seguintes. Um projeto que tinha como foco a luta pela justiça em prol dos menos favorecidos, dos deserdados, mas também em prol do restabelecimento dos direitos e garantias constitucionais, solapados pela ditadura vigente no país.

Falando assim, isso pode parecer coisa do passado. Mas não é. Existem hoje outras formas de ditadura, disfarçadas, talvez, mas nem por isso menos corrosivas e injustas. A massa de desassistidos e miseráveis assume proporções incomensuráveis, tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina e da África. Por esse motivo, a mensagem do Dom permanece atualíssima. E é por isso mesmo que urge que ela seja divulgada, propagada, discutida. É necessário conhecê-la e apropriar-se daquilo que ela tem de melhor. Pessoas como Dom não podem ser esquecidas. É nesse espaço que se inserem as atividades do Grupo Dom Hélder, recém-criado em Fortaleza, que, há poucos dias promoveu o evento “Hélder Câmara: Memória viva”, durante o qual foi lançada a edição das Circulares.

Tenho lido tais circulares com grande emoção e, por que não dizer, comoção. Numa época em que desapareceram quase que na totalidade as referências, aquelas figuras que nos ajudavam a sustentar uma utopia que conferisse sentido à vida, o Dom aparece ainda como uma figura ímpar, iluminada, instigante. Não se lê as circulares do Dom impunemente. Impossível não se sentir movido, impelido a sair da zona de conforto. Apesar de toda desesperança, de toda descrença no humano, há que se manter um mínimo de utopia.

Não se pense, porém, que utopia seja sinônimo de quimera, algo que habitaria as regiões etéreas do imaginário. A propósito do Dom, dizia o teólogo J. B. Libânio que ele era “uma utopia viva percorrendo o mundo”. E conclui Marie-Jo Hazard, no livro Orar 15 dias com Dom Hélder Câmara: “Porque a utopia, longe de ser uma ideia inacessível, é esta força que faz viva a esperança e impulsiona à ação”.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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