É provavelmente essa mistura de fé com paixão e identificação que nos permite entender Aparecida como o primeiro símbolo verdadeiramente nacional, a figura mais antiga da nossa história que representou a unidade do Brasil.

Rodrigo Alvarez

[Alvarez, Rodrigo. Aparecida: A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. 1. Ed. – São Paulo: Globo, 2014, p. 16.]

Quando, em 1717, três pescadores da Vila de Guaratinguetá, Domingos Martins Garcia, João Alves e Felipe Pedroso, saíram para pescar no Rio Paraíba do Sul, não tinham, certamente, noção do importante episódio que estavam prestes a protagonizar. Durante a pescaria, a certa altura, João Alves, ao recolher a rede de pesca, percebeu que, ao invés de peixe, “pescara” o corpo de uma imagem sem cabeça. Faz uma segunda tentativa e, desta feita, sobe a tona a cabeça da imagem. Estava iniciada a saga daquela que seria, muitos anos depois, declarada padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, ou, como se tornou mais comumente conhecida, Nossa Senhora Aparecida.

Pois bem, é dessa saga, interessantíssima, que trata o livro “Aparecida: A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil”.  O autor, Rodrigo Alvarez, nasceu no Rio de Janeiro e passou os últimos dez anos entre São Paulo, Nova York, São Francisco e Jerusalém, como repórter e correspondente da TV Globo.  

Não bastasse o peculiaríssimo título da publicação, o leitor se defronta, ao longo dos seus 35 capítulos, com uma história recheada de episódios tão surpreendentes quanto curiosos. Ao atribuir à história narrada o qualificativo de saga, não o fazemos por mera força de expressão. O fato é que, nesse caso, esse é o vocábulo mais adequado para caracterizar o longo e tortuoso caminho seguido pela pequenina imagem de 36 centímetros ao longo de mais duzentos anos, até se consolidar definitivamente como Padroeira do Brasil.

Aspecto muito particular do livro é a interpretação atribuída pelo autor a Nossa Senhora Aparecida como uma autêntica representação da identidade do povo brasileiro. Essa ideia perpassa a publicação da primeira à última página. Cite-se, à guisa de exemplo, o que escreveu o autor a propósito da primeira tentativa de construir um santuário que pudesse abrigar a imagem. A licença, exarada pelo bispo do Rio de Janeiro no dia 5 de maio de 1743, dizia: “Havemos por bem de lhes conceder licença, como pela presente nossa provisão lhes concedemos, para que possam edificar uma capela com o título da mesma Senhora na dita freguesia, em lugar decente e assinalado pelo reverendo pároco” (p. 116).

Sobre o episódio, comenta Rodrigo Alvarez: “Com essas palavras, a Igreja católica reconheceu a existência da primeira imagem milagrosa surgida em terras brasileiras, de uma santa de barro que se tornaria parte importante da identidade do Brasil. No latim usado até hoje pelo Vaticano, foi como se dissesse habemus santa! Ou, colocando em termos mais simples, era o Brasil descobrindo a sua cara, cada vez mais diferente de Portugal” (p. 116).

“Aparecida: A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil”, é um livro que se lê com imenso prazer e, para os devotos de Nossa Senhora Aparecida, com redobrado interesse. Li-o quase de uma assentada só, em apenas dois dias. Não quero me estender nas citações para não roubar ao leitor o prazer da leitura, na própria publicação, de episódios tão curiosos quanto desconcertantes da história dessa que, no dia 8 de setembro de 1904, receberia uma rica coroa, tornando-se, assim, a Rainha dos brasileiros, conforme sugere o autor:

“Depois da chegada dos bispos, leu-se uma oração dedicada a Nossa Senhora Aparecida, feita especialmente para aquela data.”

“A serpente maligna contra quem foi lançada a primeira maldição continua teimosamente combatendo e tentando os míseros filhos de Eva. Eis, bendita Mãe, Rainha e advogada nossa, que, desde o primeiro instante da vossa conceição, esmagastes a cabeça do inimigo.”

“Era um trecho da reza que, àqueles que a repetissem, garantia trezentos dias de perdão, concedidos na forma de indulgência por sua santidade, o papa Pio X. Depois da oração, a coroa que a princesa Isabel dera de presente foi colocada sobre a cabeça da santinha. Deixou de ser só um ornamento luxuoso que se juntava ao manto azul e lhe escondia a feiura do pescoço quebrado para se transformar num símbolo de poder.”

“Era curioso. O Brasil ainda estava se acostumando a viver numa República, sem os nobres herdados de Portugal, mas passava a ter, tardiamente, uma rainha. Era um passo decisivo para a consolidação de uma imagem nacional que se completaria algumas décadas depois com sua proclamação como padroeira do Brasil.” (p. 182).

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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