Creio que não gire muito bem da bola. Talvez tenha na cabeça um parafuso a menos ou, pelo menos, frouxo, como se diz por aí. O fato é que o sujeito é mesmo esquisito. Quanto se aproxima de alguém numa rodinha de amigos, se por ventura há algum desconhecido, todo sorrisos, vai logo estendendo a mão e se apresentando: “Satisfação, Magella.” Se alguém se arrisca a explorar melhor o nome, ele vai logo dizendo de saída: “Magella com g e dois eles”. Sempre completa: “Os dois eles foi invenção do escrivão, quando eu fui registrado, lá no cartório de Massapê, onde nasci pela graça de Deus e com as bênçãos da Virgem Maria.” Registre-se que não se percebe nenhuma mágoa em sua voz quando menciona o fato. Chega-se quase a notar um quê de orgulho, como se a letra grafada em duplicidade lhe conferisse uma certa importância, diferenciando-o de outros tantos Magelas deste mundo de Deus.

A história do parafuso a menos se deve a uma frase que ele sempre traz nos lábios, disparada nos momentos mais inverossímeis e à queima-roupa, deixando seus interlocutores totalmente desarmados e sem ter pra que argumentos apelar: “Sou um inventor de verdades”.

Mas não foi sempre assim. Amigos mais próximos dizem que o simpático e destrambelhado Magella deu pra esse negócio de inventor de verdades de uns vinte anos prá cá. É que o sujeito sempre foi, como se diz em boa gíria, fissurado por leitura. O homem lê tudo que lhe cai às mãos. É doido por livros. Um desses tipos a quem costumam chamar de leitor onívoro. Pra ele não há livro tão ruim a ponto de não se poder tirar algo de proveitoso, por mínimo que seja.

Acontece que, de tanto ler, parece que Magella começou a misturar as coisas. Sua cabeça ficou assim meio confusa, sem distinguir lá muito bem em que devia ou não acreditar. A primeira conclusão a que chegou, a duras penas e à custa de muita pestana gasta pelo debruçar-se por dias seguidos, horas a fio, sobre aquele infindável mundo de palavras, foi que não é possível, em última instância, aquilatar o que definitivamente possa ser declarado verdade.

“Vixe!”, exclamaria Magella, com aquele espanto próprio de quem, de repente, se dá conta de que está perdido num labirinto que nem Teseu, sem uma Ariadne que lhe venha socorrer.

Foi aí que ele começou a remexer no seu baú de verdades convenientes. Porque, não sei se já se deram conta disso, mas toda pessoa tem a sua coleçãozinha de verdades convenientes, sempre sacadas nos momentos mais periclitantes.

Pois é, no baú do Magella cabem muitas verdades. Se, por um lado, para ele as coisas se complicavam um pouco por misturar tantas disparidades, o que não raras vezes acabava fundindo-lhe a cuca, em contrapartida, devido ao seu interesse por tantos e tão diferentes autores, com o tempo ele foi adquirindo a rara habilidade de reunir tranquilamente figuras tão diferentes quanto, por exemplo, Santa Teresa d’Ávila e Clarice Lispector.

Pois foi num desses momentos de cuca fundida, em que se viu totalmente perdido e alheado no labirinto de si mesmo, que lhe saltaram bem à frente não apenas uma, mas duas Ariadnes.

Os fios salvadores vieram-lhe em duas frases límpidas e claras. A primeira lhe foi soprada pela monja carmelita nascida há quinhentos anos, Santa Teresa d’Ávila: “Não dou atenção à razão, que não passa de uma louca modesta”.

O complemento viria da escritora brasileira vinda de além-mar, Clarice Lispector: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada”.

Desde então, cada vez que a razão tenta dar as rédeas, tolhendo-lhe a liberdade de ousar suas elucubrações pelo fertilíssimo mundo da imaginação, Magella abre o velho baú, arranca de lá aquelas duas verdades convenientes e, munido delas, segue pela vida a fora, lépido, de alma leve, inventando, ele próprio, suas verdades…

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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