Sob os influxos do odor e sabor de uma fumegante xícara de café, lia, no início dessa semana, um trecho daquele que foi o livro de estreia de Emil Cioran, no qual, com a veemência e beleza que apenas se intensificariam em seus escritos a partir de então, afirma o estreante filósofo romeno de vinte e dois anos: “Nem todas as pessoas perderam a ingenuidade; por isso, nem todas são infelizes. Quem viveu ou vive assimilado, ingênuo, na existência, não por burrice ou imbecilidade – pois a ingenuidade exclui tais deficiências, sendo ela um estado muito mais puro – mas por um amor instintivo e orgânico pela graça natural do mundo que a ingenuidade sempre acaba descobrindo, atinge uma harmonia e realiza uma tal integração na vida que merece ser invejada ou ao menos apreciada pelos que se perdem nos cumes do desespero. Desintegrar-se da vida corresponde a uma perda total da ingenuidade, esse dom encantador que o conhecimento, inimigo declarado da vida, destruiu” (Nos cumes do desespero. Trad. do romeno por Fernando Klabin. Apresentação de José Thomaz Brun. – São Paulo: Hedra, 2011, p. 60).

Desde que li Silogismos da amargura e Breviário de decomposição, no início dos anos noventa, tenho retornado com frequência a Cioran. Leio e releio trechos de seus livros sempre com renovado prazer. Por isso passei anos aguardando ansiosamente que nós, leitores brasileiros admiradores de sua obra, tivéssemos acesso ao seu livro de estreia em tradução para a língua portuguesa. Quando isso, enfim, aconteceu, a publicação não mais saiu do meu birô.

O contato com o pensamento de Cioran, esse “cético de plantão de um mundo agonizante”, nos obriga a refletir sobre aquela que talvez seja a questão mais premente com que se defronta qualquer ente humano: o sentido da vida. Força-nos, igualmente, a sopesar os limites de consciência admissíveis e necessários a uma boa fruição da existência. Não se trata de abdicar do desejo de saber. Quem poderá garantir que o almejado sentido não se restrinja, exatamente, a essa incessante busca? Devemos pensar a vida, evidentemente, mas é igualmente necessário que vivamos. Se assim é, demos uma chance, por mínima que seja, à esperança de que viver valha a pena. Resguardemos uma margem de incerteza que nos permita a aposta na batalha, mesmo correndo o risco da derrota.

Creio ser provável que um nível exacerbado de lucidez seja incompatível com a vida. Urge, pois, que se preserve certa quota de ingenuidade – de inconsciência, talvez – sob pena de sermos lançados num verdadeiro abismo sem fundo, precipitando-nos numa falta de sentido em que viver se torna impraticável. Talvez a premissa sob a qual pautar a vida deva ser não menos que essa: se em algum momento da existência suspeitarmos que a vida não tem sentido, tratemos imediatamente de inventar-lhe um.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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