Ou Deus evitava a criação, trancando-se em seu egoísmo e sua solidão, ou aceitava a ideia de seres que não podiam ser iguais ao Ser. Criatura, por definição, não se confunde com o Criador. É pequenina e frágil. Deus não tinha corpo como nós. Mas o Filho de Deus teve a boa ideia de fazer-se homem e ter natureza humana (corpo e alma), como qualquer um de nós.

Dom Hélder Câmara

(Circulares pós-conciliares: de 25/26 de fevereiro de 1968 a 30/31 de dezembro de 1968 / Dom Hélder Câmara; orgs. Zindo Rocha , Daniel Sigal. – Recife: Cefe, 2013; v. 4., t. 2., p. 133.)

O meu fascínio pela figura de Dom Hélder Câmara não é recente. Há muitos anos aprendi a admirá-lo, sobretudo por sua coragem na defesa dos mais pobres e esquecidos, vítimas de uma sociedade segregacionista e injusta.

Mais recentemente, porém, tenho descoberto novas facetas desse personagem extraordinário. Tais descobertas têm feito crescer em mim o desejo de conhecer melhor e com mais profundidade a vida e a obra de Dom Hélder. Movido por tal anseio, tenho me dedicado mais e mais à leitura das suas circulares conciliares e pós-conciliares, publicadas em treze volumes pelo Instituto Dom Hélder Câmara em parceria com o Governo do Estado de Pernambuco.

Pois bem; lendo, segunda-feira passada, um desses volumes, me deparei com um texto encantador, escrito entre os dias 12 e 13 de junho de 1968, por ocasião da “Vigília da Festa do Corpo de Deus”. Tão logo o li, pensei: vou escrever um comentário sobre este texto, já que na próxima quinta-feira celebra-se a Festa de Corpus Christi. É o que passo a fazer agora.

Comecemos pelo trecho que citei acima, em epígrafe. Valendo-se de um artifício muito sofisticado, o Dom abre seu texto falando do que poderia ser um egoísmo da parte de Deus se tivesse evitado a criação e se isolado, caso não aceitasse a ideia de criaturas que não poderiam ser iguais ao Ser. Eis, porém, que o Seu Filho resolve fazer-se homem. Note-se que, sem usar a palavra amor, o Dom se refere aqui, de forma insofismável, ao amor de Deus, que enviou Seu Filho para redimir o mundo. Nisso, o bispo de Olinda revela uma grande sutileza e sofisticação. E também uma surpreendente novidade: a ideia de encarnar, ele a atribui ao Filho, não ao Pai.

A seguir, o Dom nos faz lembrar características assumidas pelo Filho de Deus que o fazem, verdadeiramente, humano. Tal humanidade, entretanto, não ofusca, nem, tampouco, invalida sua dimensão divina: “Que grande e belo exemplo, Deus que se faz homem, tornando-se capaz de entender pessoalmente, diretamente a fragilidade humana! A divindade, claro, não o abandonou. Mas sente-se que ela se apagava, se escondia, ficando o Filho de Deus, quase sempre entregue à humanidade que assumiu. Sentiu cansaço, fome, tristeza, angústia, ideia de abandono pelos amigos e pelo próprio Pai…”

No parágrafo seguinte, vem um toque que só poderia emanar mesmo da pena de Dom Hélder: “Com absoluto respeito e entre cristãos adultos: que humildade, Deus aceitar a condição de alimentar-se e, consequentemente, desfazer-se dos dejetos da alimentação!… Deus que entende pessoalmente, diretamente a condição sub-humana de milhões de criaturas que não têm meio decente de satisfazer as imperiosas necessidades fisiológicas!…”

Note-se a perspicácia e o cuidado demonstrado por ele ao introduzir um assunto que a muitos cristãos dados a certas carolices pode soar como verdadeira blasfêmia. Antes de referir que Cristo era tão humano que tinha, inclusive, necessidades fisiológicas, ele usa a expressão “Com absoluto respeito”. A seguir, se sai com palavras de grande perspicácia: “e entre cristãos adultos”. Palavras certeiras que atingem diretamente as vítimas de uma espiritualidade infantil e desvirtuada, lamentavelmente tão comum entre nós católicos.

Nos dois parágrafos finais do belo texto, o Dom ataca uma questão delicadíssima e muito mal resolvida entre uma boa parcela do mundo católico: a sexualidade. Embora ele inicie o parágrafo se reportando à coragem do Filho de Deus, corajoso mesmo foi ele, um arcebispo, representante da hierarquia católica, arriscar-se a tratar do assunto de forma tão simples e aberta, sem nenhum tabu: “Que coragem e que humildade, o Filho de Deus enfrentar o farisaísmo de todos os milênios e receber corpo íntegro, inclusive com órgão sexual! Os que têm a carne como simples sinônimo de sexo e têm o sexo como sinônimo de pecado nem conseguem imaginar sexo no Homem-Deus. A Sagrada Escritura, no entanto, nos fala da Circuncisão. A Igreja, durante séculos, a festejou no primeiro dia do ano.

“No Calvário, Cristo aceitou ficar completamente despido. Há pinturas que o mostram assim. A piedade cristã, para evitar o choque da maioria, cobriu as partes, chamadas vergonhosas, do Salvador…”

À guisa de conclusão, o Dom nos deixa uma sentença que é uma verdadeira provocação para muitos dos que se dizem professantes do cristianismo: “Como Deus é muito mais simples e muito mais humano que os homens!…” Circulares pós-conciliares: de 25/26 de fevereiro de 1968 a 30/31 de dezembro de 1968 / Dom Hélder Câmara; orgs. Zindo Rocha , Daniel Sigal. – Recife: Cefe, 2013; v. 4., t. 2., p. 133.)

Dom Hélder Câmara é um dos três santos com cuja leitura inicio minhas orações diárias. Como tenho aprendido com o Dom! Estudar sua vida, ler as biografias que foram escritas sobre ele (tenho várias em minha biblioteca), e, especialmente, ler suas cartas, tem me levado a dimensões da espiritualidade que eu jamais poderia imaginar, modificando profundamente meu modo de ser cristão e de responder aos desafios que o Cristo humanizado me coloca diariamente.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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