Em realidade episódios dessa natureza ocorreram algumas vezes. Fosse noite ou fosse dia. Para mim nunca foi pesado nem eu poderia considerar aquilo coisa extraordinária. Apenas um simples ato de caridade cristã, praticado, como manda o preceito, de maneira espontânea e por quem nunca se negou de servir ao próximo. Nem me dava conta do que estava fazendo; era uma atitude quase automática. A propósito, não dormiria em paz ouvindo alguém chamar insistentemente por mim. 

Pe. Cícero, por Alberto Farias

[Farias, Alberto. O padre Cícero e a invenção do Juazeiro. 3. Ed. Reimpressão. – Fortaleza: Tipografia Íris, 2016, p. 239.] 

No texto que introduz a terceira edição do livro “O Pe. Cícero e a invenção do Juazeiro“, ao estabelecer um paralelo entre o Papa Francisco e o biografado, o escritor Alberto Farias afirma: “Foi preciso que surgisse um papa com os qualificativos do Papa Francisco para que processos cavilosos, que excluíam personagens do porte do Padre Cícero do seio da Igreja, tivessem os seus desfechos deferidos em curto espaço de tempo” (p. 5). O livro vem a lume ainda sob a égide da recente reabilitação do Pe. Cícero pelo Vaticano, patenteada pela missiva expedida pelo cardeal Pietro Perine ao bispo do Crato, por ordem do Papa Francisco, em 20 de outubro de 2015.

Abordar a figura do Pe. Cícero é sempre um grande desafio para quem quer que ouse se lançar a tal empreitada. Certamente por ter consciência do risco, o autor faz uma advertência que poderia se aplicar à maioria dos assuntos atinentes à vida do biografado. Assim é que, após introduzir o controvertido tema dos episódios protagonizados pela beata Maria de Araújo, Alberto farias adverte: “Falar sobre os episódios de Juazeiro exige um prévio e amplo conhecimento dos elementos que sobre eles interferiram antes, durante e depois desses fatos. Somente assim e, obedecendo-se a um plano onde a coerência case com a realidade do acontecimento, pode-se chegar ao esclarecimento do todo sem comprometer a realidade vivida” (p. 55).

Em que pese o desafio implícito na advertência, nem por isso o autor se furtou ao propósito de escrever o relato da vida do Patriarca de Juazeiro. Entretanto, muito mais que redigir apenas um relato, foi além, perpetrando a ousadia de fazê-lo na primeira pessoa. Quem fala, pois, na obra em comento, é o próprio Pe. Cícero, que, assim, ganha voz pela pena de Alberto Farias.

Com o fito de realizar tal intento, o autor faz uso de dois estratagemas. Em algumas ocasiões, valendo-se da criatividade, imagina o que o seu biografado diria ante determinadas situações; em outras, lançando mão de escritos do próprio Pe. Cícero, dentre os quais sobressaem suas cartas, cita-o literalmente.

Cite-se, à guisa de exemplo, em se tratando do primeiro caso, as reflexões que tece acerca de sua estadia em Roma, quando ali esteve para se justificar diante dos inquisidores a propósito dos episódios envolvendo a beata Maria de Araújo: “Mil preocupações. A própria grandiosidade arquitetônica da Cidade-Eterna me aniquilava; senti-me desolado e quase perdido naquele mundo pomposo e estranho. Em alguns momentos fiquei a medir os contrastes da vida: no meu arraial distante (humilde, porém acolhedor) eu era o centro das atenções; naquela inebriante cidade, jogado ao léu da sorte, era apenas um inexpressivo número de passaporte, perdido no emaranhado de pessoas, todas elas presumivelmente importantes e, com certeza, indiferentes à minha presença” (p. 165).

Alberto Farias

Quanto ao segundo caso, veja-se um trecho da bela correspondência endereçada ao amigo Pe. Climério, datada de 6 de dezembro de 1900, em que, com muita sensibilidade e compaixão, fala do flagelo da seca: “O nosso Ceará passa por uma crise tão medonha que está ficando despovoado. Ainda que tenha visto o que dizem os jornais sobre a seca do Ceará, não faz ideia do que seja. Parece não ter mais um terço da população. Morre-se de pura fome, e a imigração no maior desespero de escapar a vida, atirando-se os pobres sem nenhum recurso. É um horror e cada dia aumenta mais. Meu amigo, cada cearense deve por uma trombeta na imprensa e em toda parte, gritando com toda força pedindo socorro para um grande naufrágio do Ceará. Pode ser que esses governos que têm o dever de salvar os Estados nas calamidades públicas desistam, e que não queiram passar por assassinos deixando caprichosamente morrer milhares de vidas que podiam salvar e não querem” (p. 383).

Considero os dois parágrafos finais do último capítulo um dos momentos mais belos e tocantes do livro. Eles tornam patente o impressionante talento do autor ao expressar de forma absolutamente clara e concisa o que seriam, em essência, o Cariri e a cidade de Juazeiro. Creio que alguém jamais tenha escrito sobre o assunto algo simultaneamente tão profundo, tão veraz e tão poético:   

“No entanto, a fórmula mágica para obter-se tão surpreendente resultado foi muito simples: juntou-se aos naturais do lugar o romeiro contrito e mais umas poucas pitadas de gente vindas de outros lugares e a todos deu-se um banho de mística. Sob tal auspício, a miscigenação deu como resultado um povo determinado e vitorioso, pelo seu próprio esforço. Juazeiro é, pois, uma oficina de trabalho; verdadeira colmeia onde a abelha rainha é a fé e a determinação de vencer está cima de qualquer obstáculo.”

“Em palavras finais pode-se afirmar que o Cariri, embora seja uma região rica e diferente, o progresso que domina a região não pode ser analisado tomando-se por base somente as suas riquezas naturais. Existe algo muito mais importante a ser considerado – a espiritualidade de um povo – que desconhecendo o impossível, fez brotar em ambiente tão exíguo, uma cidade que se projeta para o futuro sem pejo da sua origem místico-religiosa” (p. 361).   

Inicialmente publicado em 1994, “O Pe. Cícero e a invenção do Juazeiro” foi reeditado em 2016. Em que pese a desmedida ousadia do autor ao escrever um relato na primeira pessoa, pode-se dizer que o projeto foi coroado de êxito. Não bastasse a beleza do texto, que se lê com imenso prazer, a obra traz, no final, material muito rico e de particular interesse para quantos se interessem pela vida do Pe. Cícero, constituído pelos seguintes anexos: o Auto de perguntas a que foi submetida a beata Maria de Araújo, o Testamento do Pe. Cícero, as cartas do Pe. Cícero, uma importante iconografia retratando o biografado e outras personagens a ele associadas, e, por fim, uma rica bibliografia em que são listados arquivos, jornais, entrevistas, correspondências e obras publicadas.

Por fim, há que dizer que o Patriarca de Juazeiro afigura-se um desses tipos humanos extraordinários que, por sua singularidade, impõe-se naturalmente como perene objeto de curiosidade e interesse, a tal ponto que, por mais que se tente desvelar as peculiaridades de sua vida e pessoa, sempre haverá algo novo por dizer. Prova disso é quantidade de autores que têm se dedicado, ao longo de décadas, ao afã de vasculhar os fatos de sua vida em busca de um novo facho de luz que possa acrescentar algum entendimento a essa controvertida figura. Tem sobeja razão, pois, Alberto Farias, quando assevera: “E todos os antagonismos, afinal, fizeram do Pe. Cícero uma personalidade audaciosamente diferente e curiosa” (p. 29).

 

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles