Há alguns anos, ao entrar na livraria Paulus, enquanto olhava de forma mais ou menos aleatória os livros dispostos nas prateleiras, um, em especial, me despertou a atenção pelo título, As glórias de Maria. Devido ao projeto de formar uma pequena biblioteca mariana, já vinha adquirindo, sempre que possível, livros sobre o tema. Assim, não precisei nem mesmo folhear aquele, para mim até então desconhecido, para logo me decidir a adquiri-lo. Chegando em casa, nem mesmo o desembalei, deixando-o sobre o birô.

Dois dias depois, como fosse sábado, dia dedicado a Maria, resolvi que iniciaria a leitura. Qual não foi minha surpresa ao ler, logo nas primeiras páginas, a informação de que, naquele dia, primeiro de agosto, celebrava-se a memória do autor, Santo Afonso Maria de Ligório. Devo dizer que não acredito em acasos. Se a vida tem um propósito, então em tudo se pode vislumbrar a Providência Divina operando em silêncio e sem alarde por trás dos fatos, mesmo os mais fortuitos.

A partir de então, não larguei mais o livro. As Glórias de Maria se tornou livro de cabeceira, com o qual passei a iniciar minhas orações todas as manhãs. Depois adquiri outro livrinho valiosíssimo, Orar 15 de dias com Santo Afonso, que veio se somar ao primeiro. Este último teve o condão de me fazer sentir a cada dia mais próximo de Santo Afonso, ajudando-me a adentrar um pouco sua intimidade, ao mesmo tempo em que me fazia imergir sempre com mais profundidade em mim mesmo, conduzido pelas reflexões motivadas pela leitura diária todas as manhãs.

Nunca mais deixei de ler Santo Afonso, o que sempre me tem proporcionado novas e fascinantes descobertas. A primeira delas foi, certamente, um maior aprofundamento na figura da Virgem Maria como caminho seguro para Cristo. A propósito, escreve Santo Afonso: “Na Missa da vigília da Assunção faz-nos a Igreja saber ‘que a Mãe de Deus foi transferida deste mundo para interceder por nós junto a Deus, no céu, com plena confiança de ser atendida’. Dá S. Justino a Maria o título de árbitra de nossa sorte. O árbitro é mediador entre duas partes em contenda, que lhe entregam a decisão sobre suas exigências. Com isso quer dizer o Santo: Como Jesus é medianeiro junto ao Eterno Pai, assim Maria é nossa medianeira junto a Jesus; a ela entrega o Filho todas as razões que tem contra nós o Juiz” (Santo Afonso Maria de Ligório. Glórias de Maria: com indicação de leitura e orações para dois meses marianos. Versão da 11ª. edição italiana pelo Pe. Geraldo Pires de Souza. – 3ª. ed. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 1989, p. 171).

Santo Afonso, um apaixonado por Santa Teresa D’Ávila, Mestra de oração, foi, também, ele, um Mestre no assunto. Assim como a Santa carmelita, proporciona-nos ele, por seus escritos, um itinerário para a intimidade com Deus. Aliás, vale citar um trecho belíssimo de uma de suas obras em que trata do amor entre a alma e Deus. Tema, diga-se de passagem, que São Francisco de Sales, outro grande Mestre muito estimado e admirado por Santo Afonso, desenvolveu de forma muito bela no magistral Tratado do amor de Deus.

Pois bem, para tratar do assunto, Santo Afonso faz uso de uma metáfora tomada de empréstimo a outro Santo. Diz ele: “Escreve São Gregório de Nissa: ‘Feliz flecha, que consigo traz ao coração Deus que a lançou!’ Quer dizer o santo padre que quando Deus lança alguma seta de amor num coração, isto é, alguma luz especial com que o faz conhecer sua bondade, o amor que lhe tem e o desejo que tem de ser amado por ele, naquele momento vem o próprio Deus junto com aquela seta de amor, enquanto ele, que é o arqueiro, é o próprio amor: ‘Porque Deus é amor’ (1Jo 4,8). E como a seta fica fixa no coração que feriu , assim Deus, ferindo uma alma com seu amor, acaba por ficar sempre unido com aquela alma que feriu” (Santo Afonso de Ligório. De bem com Deus: Vontade de Deus, Conversa com Deus, Amor de Deus. Tradução e adaptação José Dutra. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2001, p. 10).      

Num outro livro, Santo Afonso tem um trecho que, de certa forma, completa este, pois trata mais uma vez do tema desse belíssimo e complexo jogo de sedução entre Deus e a alma. Nesse caso, aponta a oração como o caminho privilegiado de acesso da alma a Deus: “É preciso ir à oração não para sentir consolações espirituais, mas principalmente para nela acolher o que Deus quer de nós: ‘Fala, que teu servo escuta’ (1Sm 3,10). Senhor, fazei-me saber o que quereis de mim, que eu quero fazê-lo. Algumas pessoas seguem na oração até quando perduram as consolações. Quando cessam, deixam de rezar. De fato, na oração Deus costuma consolar suas almas diletas e também lhes permite provar um pouco daquelas delícias que prepara no céu àqueles que o amam. Os amantes do mundo não conseguem entender isto. Estes, habituados a provar apenas os prazeres do mundo, desprezam os celestes. Se os provassem, certamente deixariam todos os seus prazeres e se fechariam numa cela para estar a sós com Deus! A oração é uma conversa entre a alma e Deus: a alma lhe expõe seus afetos, desejos, seus temores, seus pedidos. E Deus lhe fala ao coração, fazendo-a conhecer sua bondade, o amor que tem, e o que deve fazer para satisfazê-lo: ‘Por isso eu mesmo a seduzirei, conduzirei ao deserto e lhe falarei ao coração’ (Os 2,18) (Santo Afonso Maria de Ligório. Uma estrada de salvação: Para quem quer progredir no amor de Deus. – Tradução de Afonso Paschotte. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2002. [Coleção Escritos de Santo Afonso, 2], p. 66).

Essa sedução tem por fim a manifestação do transbordante amor de Deus, cujo epítome se consuma na encarnação de Cristo, sobre o qual exclama Santo Afonso, com admiração e enlevo: “Ó Amor Divino, fostes maior do que exteriormente vos mostrastes. Mostrastes-vos grande exteriormente, porque tantas chagas e feridas nos falam de um grande amor. Mas não dizem toda a sua grandeza. Interiormente fostes maior do que exteriormente vos manifestastes: vossas dores físicas foram, apenas, uma faísca que saiu daquela grande fornalha de imenso amor” (Santo Afonso Maria de Ligório. A prática do amor a Jesus Cristo. Tradução Gervásio Fabri dos Anjos. – 7. ed. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 1996, p. 19).

Se posso ousar me dizer seduzido pelo infinito amor de Deus manifestado em Cristo, devo admitir que devo tal sedução a alguns servos seus a quem Ele, indiretamente, usou como meios para me seduzir. Santo Afonso se conta entre um destes servos. Posso dizer que meu encontro com ele foi um caso de amor à primeira vista. Talvez por senti-lo tão humano, o sinta igualmente tão próximo a mim. Nas minhas orações, o tenho procurado como se procura a um amigo muito querido para se aconselhar nos momentos de dificuldades, dúvidas e incertezas. Um amigo que, tão humano e passível de erros quanto eu, é, por isso mesmo, capaz de entender e aceitar as minhas fraquezas e mostrar para elas um lenitivo.

Não me canso de ler os dois últimos parágrafos da bela biografia do Santo escrita por Martin Leitgöb, que sempre me fazem senti-lo muito próximo a mim. Escreve o autor: “Evangelizari a pauperibus (‘ser evangelizado pelos pobres’) – essas palavras deixar-se-iam completar com outra: Evangelizari a peccatoribus (‘ser evangelizado pelos pecadores’). O que adiantaria o maior arrependimento dos pecados cometidos se não ‘desembocasse’ numa alegria ainda maior pelo perdão recebido de Deus! Afonso nunca se curou totalmente de seus escrúpulos e temores de consciência, mas usava de grande misericórdia com aquelas pessoas que iam a ele com suas falhas e fraquezas. Talvez lhe tenha sempre dado na vista o quanto o pecado tinha condições para as quais o homem não está crescido, apesar de toda liberdade que tem. E talvez ele pudesse, justamente em tais condições, perceber a força da cura interior quando administrava a absolvição” (p. 123).

E conclui o autor: “Tudo isso não são mais que suposições e interpretações. Mas elas convidam, aliás, o próprio Afonso convida, para refletir tanto sobre a misericórdia de Deus, como também sobre a profunda relação com Deus na oração, e praticar as duas atitudes na vida concreta. Assim visto, esse santo napolitano, que por vezes atuou estranhamente em nós com toda a sua maneira de ser, pode estar mais próximo de nós do que imaginamos antes” (Leitgöb, Martin. Afonso de Ligório: mestre da oração e da misericórdia. Tradução Clóvis Bovo. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2014, p. 123).

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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