Uma vida entre livrosAlém do conteúdo, edição, encadernação, diagramação, tipografia, ilustração, ou papel, o livro exerce sobre mim uma atração física. Não me satisfaz ver um livro numa vitrine, sem poder pegá-lo. Minha tese é que a gente deve poder tocar naquilo que gosta, sentir objetos e pessoas… Gosto de artes gráficas, embora meu conhecimento seja empírico – mas convivendo com o livro a vida inteira, lendo coisas sobre tipografia, diagramação, ilustração, visitando bibliotecas, estudando catálogos e bibliografias, conversando com amigos que também gostam de livros, a gente naturalmente acaba aprendendo alguma coisa. Chego a pensar se não terei sido gráfico numa encarnação anterior, ou se o serei numa encarnação futura…

José Mindlin        

[Mindlin, José. Uma vida entre livros: reencontros com o tempo. Prefácio de Antonio Candido. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 22].

O mundo dos livros está mais pobre, especialmente o mundo brasileiro: o Brasil perdeu, na manhã de ontem, José Mindlin. Dele se pode dizer que não foi apenas um bibliófilo, mas O Bibliófilo. Embora não tenha tido o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, também me sinto mais pobre, pois para mim José Mindlin sempre foi, e continuará sendo pelos anos a fora, uma grande fonte de inspiração. Nascido em 1914, José Mindlin foi um empresário que dividia seu tempo com a paixão pelos livros. Muito cedo ainda, aos treze anos de idade, começou a colecionar livros, dando início ao que seria, mais tarde, a maior e provavelmente a mais valiosa biblioteca particular do Brasil.  

Em 1997, Mindlin publicou um livro de memórias, com muita propriedade intitulado: Uma vida entre livros: reencontros com o tempo. Convidado para escrever o prefácio, Antonio Candido afirmou, a propósito da relação do nosso bibliófilo maior com os livros:

“Quanto a mim, acho que nunca vi nada tão interessante neste gênero. José Mindlin conta como começou a juntar livros, a perceber sua importância também do ponto de vista físico e do ponto de vista histórico, isto é: qualidade do exemplar, importância da edição, sua raridade, sua beleza. Conta como anda pelo mundo atrás deles, com paciência para esperar, habilidade para adquirir, inteligência para avaliar a sua importância. Assim, ao longo de uma vida onde o livro tem papel de relevo, foi juntando obras de qualidade incrível, exemplares únicos, exemplares quase únicos, manuscritos, raridades de tirar o fôlego aos amadores, pois há casos em que possui o único exemplar conhecido, ou um dos dois ou três que se conhecem” (p. 10).

Com relação ao segredo de colecionar livros, escreve o próprio José Mindlin:

José Mindlin em sua biblioteca. Fonte: http://www.dbd.puc-rio.br/wordpress/?paged=3

José Mindlin em sua biblioteca. Fonte: http://www.dbd.puc-rio.br/wordpress/?paged=3

“Não há grande segredo em reunir livros. Mas é preciso saber o que se quer, estudar e conhecer livros, ler catálogos (meu irmão Henrique, aliás, caçoava de mim, dizendo que minha cultura era de catálogos, o que em parte é verdade, porque nos bons catálogos se aprende muita coisa, e os daquele tempo eram ótimos), garimpar sempre, viver de olhos abertos, explorar todas as oportunidades, porque nunca se sabe o que pode surgir e, finalmente, ter sorte, se é que a sorte existe”. E conclui com uma frase que minha experiência com o garimpo de livros me leva a concordar integralmente: “A gente procura o livro e o livro procura a gente” (p. 54).

José Mindlin foi também imortal da Academia Brasileira de Letras, onde ocupava a cadeira de número 29. Sua paixão pelos livros o fez amigo de pessoas como o escritor português e prêmio Nobel de literatura José Saramago e o cineasta francês Jean-Claude Carrière, este último também bibliófilo. Ambos foram recebidos por Mindlin em sua biblioteca particular. Em 2006, Mindlin havia doado sua biblioteca para a USP, garantindo, com isso, sua preservação tanto para as gerações atuais quanto para as futuras. 

Termino com as palavras com que o bibliófilo conclui seu livro de memórias, que dão uma idéia da paixão por ele devotada ao livro: “Falei muito até agora. Pode ser até que tenha falado demais. Creio que se aplicaria bem ao meu caso a citação do Eclesiastes que serviu de epígrafe a muitas edições de Claudio Giordano, um editor criativo de São Paulo: ‘Um último aviso, filho meu: fazer livros é um trabalho sem fim’. Mas estou terminando, e, se tivesse de escolher uma coisa que desejaria que ficasse bem clara, de tudo quanto foi dito, é que, num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver” (p. 214).

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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