Jacob Kowalski (Dan Fogler), Newt Scamander (Eddie Redmayne) e Tina Goldstein (Katherine Waterston)

Jacob Kowalski (Dan Fogler), Newt Scamander (Eddie Redmayne) e Tina Goldstein (Katherine Waterston)

Dentro da delicadeza de voltar a um universo já visitado oito vezes no cinema, existia a opção de sublinhar aquilo que já foi dito ou adentrar em um novo rumo. Toda a noção de guerra de bem contra o mal, de um excluído que se descobre especial, de uma realidade paralela onde a magia é possível é algo esmiuçado nos mínimos detalhes nos livros e filmes da série Harry Potter, de J. K. Rowling. “Animais Fantásticos e Onde Habitam”, de David Yates, propõe uma mudança de cenário.

Mais do que trocar o Reino Unido pelos Estados Unidos, os anos 1990 pela década de 1920, a nova obra do universo de Harry Potter se propõe a discussões mais maduras, ainda que dentro da mesma essência. Isso se prova já nas sequências iniciais do longa, quando Newt Scamander (Eddie Redmayne) se vê acompanhado do “trouxa” Jacob Kowalski (Dan Fogler). Com exceção da família Dursley, espécie de antagonista inicial de Potter, nunca antes houve tamanho enfoque na relação entre um bruxo e um não-mágico (trouxa ou não-maj).

De certa forma, Jacob é quem guia o olhar do público, que visita um universo ao mesmo tempo novo e familiar. Nós conhecemos os bruxos, mas não “feras” como os pelúcios (roedor que ama coisas brilhantes), occamis (espécie de cobra alada, que cresce em espaços grandes) ou tronquilhos (um bicho-pau capaz de abrir fechaduras). Então, o olhar maravilhado de Jacob é, também, o nosso. Já a trama acompanha Newt, uma importante magizoologista que contrabandeia uma mala cheia de criaturas fantásticas para Nova Nork. Paralelamente, a cidade é atacada por um ser destrutivo, o que joga as desconfianças no colo de Newt.

Percival Graves (Colin Farrell), antagonista do longa

A obra, no entanto, vai bem além disso. Os Estados Unidos da década de 1920 são apresentados como um País bastante conservador nas relações entre bruxos e trouxas. Há aí uma clara metáfora com os direitos de populações minoritárias quando, por exemplo, o filme evoca uma proibição de casamento entre os dois povos. Ao mesmo tempo, os objetivos de Grindewald, o vilão oculto do longa, parecem ser o de estabelecer um conflito aberto entre bruxos e não-bruxos.

O filme parece, a todo momento, entender o contexto em que vive. Newt é um pacifista que tenta entender as criaturas mágicas, caçadas pelos bruxos. Ao mesmo tempo, ele não hesita em estabelecer um vínculo de amizade com Jacob – e o timing de comédia de Dan Fogler equilibra a densa atmosfera política do longa. Em seus 133 minutos, “Animais Fantásticos e Onde Habitam” consegue introduzir subtextos tão ricos quanto aqueles dos oito filmes “Harry Potter” e mantém mistérios para serem degustados nos próximos quatro longas. O trabalho fora de plano, com aquilo que é intuído, mas ainda não mostrado, é impressionante para um filme baseado em uma espécie de enciclopédia de animais fictícios.

Newt e sua mala, digamos, ampla

Concomitante aos novos elementos, David Yates investe ainda no eco de Harry Potter. Há ali um bruxo mal sucedido, mas com poderes maravilhosos e que podia ser um “escolhido”. Existem forças maléficas escondidas entre as sombras. Há uma figura materna odiosa, que impõe uma educação pouco inclusiva. Todos temas familiares. Chega a soar repetitivo e até previsível, mas serve também como ponte entre os oito filmes e a nova obra. Outra força que retorna é o esmero na direção de arte, capaz de transformar a imaginação de Rowling em algo quase natural.

Esses elementos, porém, não se distanciam da noção introdutória de “Animais Fantásticos”. É, enfim, o primeiro filme de uma série de cinco, assim como “Harry Potter e a Pedra Filosofal” (2001), de Chris Columbus, adaptava o primeiro de sete livros. Ambos os filmes são quadrados, narrativamente falando, mas eficientes. A obra de Yates, no entanto, avança muito mais nas possibilidades que apresenta, fugindo do deslumbre mais óbvio de Columbus. É um produto muito mais bem acabado, em uma máquina melhor oleada. Não que não tenha defeitos. O gestual de Eddie Redmayne segue excessivo, tirando o foco de qualquer drama pessoal do protagonista, e a lógica interna daquele universo fantástico deixa alguns buracos no roteiro. Mas nada que afete a confortável viagem de volta ao “mundo bruxo”.

O tronquilho “Picket”

Novo, ainda que uma revisita, “Animais Fantásticos”, de forma orgânica e relativamente simples, é uma obra sobre ver as coisas sob um novo ângulo. O afeto como resolução de conflitos, a amizade como melhor caminho entre dois povos. É uma resposta aos tempos recheados de conservadorismo que o mundo vive hoje. Voluntária ou involuntariamente, os escritos de J. K. Rowling conseguem, mais uma vez, uma límpida leitura dos tempos em que vivemos e de quem a procura em busca de uma boa história.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 6/8

Ficha técnica
Animais Fantásticos e Onde Habitam (EUA, 2016), de David Yates. Fantasia. 133 minutos.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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