Francisca (Francisca Manuel) e Teresa (Elizabete Francisca)

Duas cidades, duas moças portuguesas de 20 e muitos, 30 e poucos anos, muita vida pela frente, mas uma bela carga de bagagem acumulada. “A Cidade Onde Envelheço”, primeiro longa de ficção de Marília Rocha, se localiza entre dois potenciais de conflito para se debruçar sobre a famosa crise dos 30. Francisca (Francisca Manuel) e Teresa (Elizabete Francisca) são amigas de longa data que se reencontram em Belo Horizonte. A história e destino em comum, no entanto, escondem diferenças fundamentais e escolhas que podem afetar diretamente a relação das duas. Ou não.

Francisca foi a primeira a chegar a BH. Sob um semblante típico de austeridade europeia, ela já se move pela capital mineira como se fosse de lá. Ela tem amantes, tem amigos, tem emprego e tem estabilidade. Teresa é a forasteira, a aventureira que se joga de bico numa nova realidade. Impulsiva, corajosa e até um pouco irresponsável, ela soa mais Brasil que Portugal. Para Teresa, Francisca era uma possibilidade de Brasil. Para Francisca, Teresa é uma lembrança de Lisboa.

Em Belo Horizonte, as lisboetas sentem saudade do mar

À primeira vista, “A Cidade Onde Envelheço” parece expositivo, daquelas obras que muito mostram e pouco discutem. Num olhar atento, por outro lado, você encontra dilemas complexos em personagens fascinantes. Uma das chaves para o desenvolvimento é o jogo entre direção de arte e de fotografia. A casa que Francisca e Teresa dividem, por exemplo, se modifica aos poucos sob o conflito mudo entre as duas. Já a câmera expõe o abismo de comportamento entre elas, ao se manter sempre fixa e distante de Francisca e passear em volta de Teresa. Paralelamente, o roteiro consegue manter uma atmosfera de afeto e carinho mesmo quando tudo parece que vai ruir.

Grande parte da razão disso é a musicalidade e o jogo de corpos. Francisca dança sozinha na sala de casa. Teresa se joga em um show de Jonnata Doll e os Garotos Solventes. Há ainda uma bela presença de “Soluços”, de Jards Macalé, que por si só justifica o filme. Tudo que circunda a obra, aliás, é bem construído. O elenco de apoio, com Leandro (Paulo Nazareth), Jonnata Doll e Wederson Neguinho traz leveza diante da força. Traz sentido dentro dos
desencontros.

Leandro (Paulo Nazareth) e Francisca

De certa forma, “A Cidade Onde Envelheço” soa quase como um filme de “bromance”, aquele misto de amizade e amor entre homens heterossexuais que virou vários filmes. No cinema e por vezes na vida, mulheres são retratadas como competitivas, até mesquinhas. Marília Rocha não cai no clichê. Ela apresenta uma atmosfera rica, imbuída de sentimentos reais e palpáveis. E dilemas ainda mais urgentes. Onde me sinto em casa? Onde quero envelhecer? Francisca se pergunta isso; já Teresa tem a certeza que nunca envelhecerá.

Filme de sentimentos e de conflitos mudos, “A Cidade Onde Envelheço” tem o grande mérito de não cair no discursivo. Discute o sentir mostrando, ilustrando, em vez de legendar com diálogos. É sobre a conduzir a própria vida, tomar as rédeas de seu destino. As metáforas visuais, aliás, são de uma inteligência ímpar. Note-se a cena final de Teresa. Há uma força não dita. Uma resolução que é sentida, sem ser escancarada.

Cotação: nota 6/8

Ficha técnica
A Cidade Onde Envelheço (BRA/POR, 2016), de Marília Rocha. Drama. 100 minutos.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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