13/2/2011 – Aos 13 anos ela sofreu um acidente de moto e perdeu o movimento de seu pé. Deu a volta por cima e é a diretora do site Amputados Vencedores
Jane Peralta, 43 anos, assistente social e diretora do Amputados Vencedores, casada com Flávio Peralta. Aos 13 anos sofreu um acidente de trabalho de trajeto, com moto. Levou graves cortes em sua perna direita e cortou o nervo que levanta o pé.

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1)                              No que consiste a sua deficiência?

 Em 1981 eu era uma adolescente no auge dos meus 13 anos de idade. Vivia o que as outras garotas vivam: hormônios latentes, curiosidade de tudo e uma energia avassaladora. No dia 14.05.1981, em Umuarama-Paraná, parecia que seria mais um dia comum em minha adolescência. Levantei-me, tomei meu café e me vesti para ir trabalhar. Trabalhava com meu pai em sua construtora. Já independente e bastante teimosa me deslocava com minha própria moto, com autorização de meu pai. Num dia cinzento e nublado saí para mais um dia de trabalho. Para uma menina de treze anos que já tinha 1,74 de altura, eu já me considerava uma adulta em todas as minhas atitudes. Depois de um dia normal, era hora de voltar para casa. Quando pisei na calçada e subi na minha moto eu vi uma família, que morava no prédio ao lado, saindo no mesmo momento em que eu saía. Os cumprimentei e ambos saímos pela mesma direção. Eu me dirigi por uma rua e eles foram por outra. Uns 800 metros depois da minha saída, eu resolvi não parar em uma esquina preferencial, já perto da minha casa. Eu pensei: “Sempre passo por aqui e nunca cruzei com um carro, desta vez eu vou passar direto”.

Não vi nada e não me lembro da cena do acidente. Bati justamente naquele vizinho que eu havia cumprimentado minutos antes. O farol do carro se quebrou e estraçalhou minha perna direita, abaixo do joelho. Caí a alguns metros da moto e o sangue jorrava para todo lado (eu cortei a artéria). Uma amiga que vira meu acidente teve que tomar calmante para dormir à noite. Aquele senhor ficou tão desesperado que não conseguia nem sair do lugar. Um outro que passou no momento parou seu fusca, me colocou dentro do carro e me levou para o hospital. O sangue jorrou pelo seu carro sem dó nem piedade.

Quando cheguei ao hospital eu já estava em estado de choque. Perdi quase todo meu sangue e rapidamente fizeram uma transfusão de sangue para garantir minha vida. Naquela noite foi um desespero para meu pai e minha mãe. Ao passarem pelo local após o acidente eles acharam que eu havia morrido. O médico falou para eles rezarem muito por mim, pois, ele não garantia nem a minha vida. Ao passar o risco de morte ele avisou que eu poderia perder a perna. Ela estava estralhaçada, toda retalhada.

No dia seguinte começaria uma jornada longa de recuperação, muitos curativos e outras cirurgias. Como a extensão do corte era grande, tive que fazer uma nova cirurgia dois meses depois para realizar um enxerto de pele. Retirei a pele das nádegas e foi muito difícil. Ficar deitada de barriga para cima, em cima de uma raspagem forçada nas nádegas foi um grande desafio. Depois que cessou a fase da dor, iniciou a fase da cicatrização que provocava uma coceira terrível. Parecia que a dor era mais suportável do que a coceira. Depois de muita paciência e resistência tudo cicatrizou. As cicatrizes que ganhei nas nádegas valeram o resultado alcançado na perna. Mais uma vez o médico avisou que poderia não dar certo. Na hora da cirurgia eu escutava: “Essa lâmina não está cortando nada”. Abençoado Dr. Carlos Alberto Potier que agüentou minhas crises, meus choros e meu mau humor.

No final das contas cortei o nervo que levanta o pé e fiquei com uma cicatriz enorme na perna (83 pontos). Para conseguir andar precisei usar uma goteira de polipropileno para manter meu pé em 90 graus, já que ficou caído.

  2)                 Quando a pessoa adquire a deficiência em algum momento de sua vida é preciso reaprender muitas coisas para se adaptar à nova realidade. Em seu caso, qual foi a adaptação que você considera que foi a mais difícil para você?

Mais difícil foi reaprender a andar. Como meu pé caía eu tinha que forçar o quadril e o tornozelo. Fiquei um ano andando assim. Minha perna doía muito. Foi somente quando coloquei o aparelho que senti algo diferente. Consegui andar normalmente e pude perceber o valor do corpo humano. Por causa do aparelho fiquei limitada ao uso do calçado. Até hoje fica difícil comprar uma sandália e um sapato. Foi somente com a Opananken que essa dificuldade se tornou mais amena.

 3)                 Na sua vida profissional e amorosa você enfrentou muitas dificuldades?

Às vezes me perguntavam o que tenho de deficiente. Até eu mesma demorei a entender que era uma pessoa com deficiência, já que me faltava uma parte de meu corpo. Embora tenha me acidentado de moto em 1981 só fui usar o caixa especial em bancos financeiros para deficientes em 1993.

Entrei em minha adolescência usando somente um tipo de calçado: tênis. Imaginem uma mocinha usando qualquer tipo de roupa sempre com um tênis no pé. Mesmo com essa limitação sempre saí com meus amigos, namorei muito e entrei para a faculdade de Serviço Social, em Londrina-Pr. Em 1991 me formei como assistente social e fui novamente para São Paulo para desbravar novos mundos. Sempre quis provar que a minha deficiência não me impediria de ser uma excelente profissional.

Foi em fevereiro de 1996 que decidi retornar para Londrina e um desejo começou a entrar em meu coração: encontrar um amor e ter a minha família. Isso tudo aconteceu depois que reencontrei minha fé em Deus. Comecei então uma jornada difícil que exigiria muita paciência. Somente encontramos o verdadeiro amor após muita lapidação. É como encontrar um diamante muito valioso. Por três longos anos eu orei, jejuei e esperei por esse grande amor, enquanto fazia meu mestrado em educação. A essa altura eu já estava dando aula na Universidade Estadual de Londrina e queria muito ter um esposo.  Até que um dia isso aconteceu, em fevereiro de 1999.

Eu havia saído da igreja que freqüentava e estava com um grupo de amigos. Quando de repente olhei ao lado e vi um rapaz que estava sentado em uma mesa e que conversava com um amigo meu. Logo notei que havia acontecido algo muito ruim com ele. Ele não tinha os dois braços e estava com o coto enfaixado. Só podia ser um acidente. Muito curiosa eu não tive dúvidas. Levantei-me da minha mesa e fui até lá. Já cheguei me apresentando e perguntando o que havia acontecido e ele explicou que havia sofrido um choque elétrico de 13.800 volts há aproximadamente um ano. Eu fiquei chocada e muito comovida com sua história e claro já fui logo convidando ele para ir para minha igreja. Trocamos nossos telefones e 15 dias depois marcamos um encontro: comer pizza. Eu já sabia que teria que lhe servir na pizzaria, mas eu não via nenhum problema nisso. Aliás, eu não imaginava que ele se tornaria o grande amor da minha vida. Foi assim que conheci esse homem maravilhoso, Flávio Peralta.

Depois desse primeiro encontro outros encontros vieram e fomos nos tornando amigos. Um dia, assistindo um filme no cinema algo aconteceu e trocamos nosso primeiro beijo. Eu senti algo diferente e um sentimento de amor foi se apossando de mim. Namoramos, noivamos e casamos em setembro de 2001.  No trabalho as coisas foram fáceis. Em 2011 serão 20 anos de formada como assistente social e nunca me faltou trabalho. Sempre fui muito dedicada e nunca deixei minha deficiência ser um empecilho.

  4)                 Após esse período de adaptação você deve ter enfrentado muitas situações complicadas, fáceis, difíceis e engraçadas. Tem algum fato ou um acontecimento que tenha te marcado após sua recuperação e que tenha a ver com sua deficiência?

Eu acredito que o mais difícil na deficiência seja o olhar do outro. A todo momento eu enfrentava olhares em direção à minha perna. Para mim isso foi o mais difícil. Nesses 30 anos de acidente perdi a paciência somente uma vez. Eu estava passando férias coma família no Balneário Camboriú em Santa Catarina quando passou por mim três pessoas. Nossa, ficaram olhando tanto para minha perna que eu não agüentei. Olhei bem em seus olhos e perguntei: “o que foi, perderam alguma coisa?”. As pessoas ficaram tão sem graça que segui orgulhosa. Sabe o que aprendi? Temos que enfrentar nossos dragões e olhar para o outro de igual para igual.

5)                 Tem algum aspecto em especial na sua vida hoje que você percebe muitas mudanças e que você valoriza muito mais do que antes?

Tem um aspecto que me incomoda muito hoje: as dores na coluna e a dificuldade de fazer certas coisas. Por causa do acidente percebi que preciso cuidar da minha saúde. Em 2010 comecei a fazer hidroginástica, voltei a fazer fisioterapia e não vivo sem reflexologia (massagem nos pés). Antes eu não valorizava isso, mas com o passar dos anos está ficando cada dia mais complicado o desvio de minha coluna e a sobrecarga da perna que ficou intacta.

6)                 Quais foram as pessoas que mais te ajudaram e o que você gostaria de falar para elas?

Sem dúvida alguma foram meus pais quem mais me ajudaram. Sem eles eu não teria suportado o acidente aos 13 anos. Meu pai tinha uma paciência de Jô. Se desdobrava para me levar ao médico e estava sempre ao meu lado. Minha mãe também foi de fibra. Ela é uma mulher muito forte e diante das dificuldades, principalmente de saúde, não abandona o barco. Dava conta de cuidar da minha irmã caçula, da casa e de mim, que fiquei na cama por um bom período. Acredito que deva ter sido muito difícil para eles.

7)                 Qual a mensagem que você gostaria de deixar sobre a questão da deficiência?

Somos muito mais fortes quando estamos na presença de outras pessoas que possuem as mesmas dificuldades que a gente. Participar de um grupo, de uma rede social, estar com uma pessoa que nos faz crescer é a melhor coisa do mundo. Quando comecei a namorar o Flávio Peralta e andava pelas ruas notei que olhavam mais para a minha perna do que para sua prótese. Na praia minha cicatriz chama mais a atenção do que seu coto. Pensei uma coisa: me sinto mais fortalecida na presença dele e quando caminhamos me sinto mais imponente. Somos mais fortes numa dupla ou num grupo, do que sozinhos. Portanto, a pessoa com deficiência não deve ter medo de se expor e criar laços com outras pessoas, deficientes ou não. Veja e deixe-se ver.

8)                 Você quer fazer qualquer outro comentário sobre o assunto? Fique à vontade.

Gostaria de divulgar nosso site e agradecer a todos aqueles que fazem parte da luta da pessoa com deficiência. Se antes, na antiguidade e na idade média essa pessoa era abandonada à sua própria sorte para morrer sozinho, hoje enfrentamos uma explosão de participação social e de muita valorização, tanto dos que nascem com a deficiência, como daqueles que adquirem a deficiência em algum momento de sua vida. Assumir uma causa também nos faz sentir melhores. Cuido do site e da carreira do Flávio e lutar pela segurança no trabalho passou a ser um objetivo. É assim que garantimos vidas sendo salvas e evitando acidentes, como o meu e do Flávio.

About the Author

Jorge Brandão

Fisioterapeuta, Osteopata, RPGista. Diretor da clinica Fisio Vida.

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