Quatro histórias, dois atores, um banco e uma luminária. É dessa forma que o espetáculo Comer, Querer, Ver começa e segue sua dinâmica narrativa. Com direção de Yuri Yamamoto, os atores Ari Areia e Tavares Neto costuram os quadros Elucubrações, Dois Mil e Desencontros, Carta de Amor e a última cena, que dá nome ao espetáculo.

O texto transforma a previsibilidade dos relacionamentos em instantes potencializados, capazes de fazer qualquer espectador na platéia se identificar. “São situações esgarçadas”, desenha Ari. “Ampliadas, quase caricaturadas mesmo”.

Imagem: Allan Taissuke

A peça marca o início do Outro Grupo de Teatro, nascido em 2011, que desde então pesquisa questões pertinentes à sexualidade humana. “Muita gente passou a conhecer nosso trabalho a partir das montagens de Caio e Léo (2014) e Histórias Compartilhadas (2015)”, lembra, “mas a gente já vem trilhando esse caminho há quase cinco anos, desde os palcos dos festivais de esquetes”.

Comer, Querer, Ver encerra temporada nestes sábado, 27, e domingo, 28 de fevereiro, no Teatro Sesc Emiliano Queiroz. A produção toma novo fôlego e, durante o mês de março, vai compor a programação do Mês do Teatro, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

Em entrevista ao Repórter Entre Linhas, Ari Areia discorre sobre os devaneios que levam aos textos, ao jogo de cena proposto pela direção de Yamamoto e reconstitui as primeiras lembranças no teatro.

A peça já começa desconstruindo a narrativa com Elucubrações. Por que iniciar com essa esquete?

Ari Areia: Fora as questões de direção ligadas à movimentação e disposição dos figurinos durante a peça, é simbólico começar com Elucubrações, porque foi onde tudo começou. A gente surgiu enquanto Outro Grupo de Teatro com a estreia desse esquete no palco do Dragão do Mar, durante a programação do VIII Festival de Esquetes da Cia Acontece (2011).

Como surgiram esses questionamentos?

Ari: Maravilhosa essa dramaturgia, né? É do Yuri Yamamoto esse texto. Tem um ar despretensioso, mas é certeiro, genial. Um texto absolutamente todo montado só com perguntas, seis laudas de perguntas encarrilhadas, e a única frase que não é uma interrogação está na negativa. Elucubração é aquele momento entre o ‘sonolento’ e o ‘apagado’ que a gente fica antes de dormir e a mente vai organizando a enxurrada de pensamentos e imagens com que se deparou durante o dia. É uma viagem. Incomoda, no começo, depois vai acomodando e, de repente, tá jogando o público de um lado para o outro… Uma direção cirúrgica também, precisa, sem excessos, com pouquíssima movimentação, ator praticamente estático. O texto, por si só, já é o que a cena pede, coube ao intérprete apenas encontrar o jeito de sustentar, encontrar a cadência, a respiração certa.

Elucubrações já foi apresentado separadamente. As histórias foram escritas para Comer Querer Ver?

Ari: Elucubrações (escrito por Yuri), e Dois Mil e Desencontros (por Ari) foram montados a partir da formação do grupo. Carta de Amor (de Karl Vanentin), e Comer Querer Ver (também do Yuri), são remontagens. A Carta, eu fazia no espetáculo ‘Só Eles O Sabem’ (2006), com direção de Alexandra Marinho, mas era uma outra estética, outra proposta. O Yuri tinha visto, na época, e sugeriu que a gente desse uma trabalhada na cena para aproximar do desenho que estávamos fazendo com o banco e a luminária nos outros esquetes. A mesma coisa aconteceu com Comer. Esse texto foi montado pelo Grupo Bagaceira para participar de festivais de esquetes nos seus primeiros anos de carreira. A montagem original tinha em cena o próprio Yuri, junto com Rafael Martins e Rogério Mesquita. Havia mais material entre o que construímos na época, mas a direção optou por esses quatro quadros pelo desenho que propunham e, no caso da Carta, pela quebra no uso do Palco Italiano.

Cada momento parte de situações possíveis para qualquer pessoa. Para a arte, tudo é material?

Ari: São situações bem esgarçadas, né? Ampliadas, quase caricaturadas mesmo. Mas têm umas possibilidades de identificação bacana com público. Na semana de estreia dessa temporada, uma moça veio nos cumprimentar acompanhada do namorado, ao final da sessão, e disse “a gente se viu muito, na cena” e apontou que ela era mais parecida com o personagem de um e o namorado mais parecido com o outro personagem. Isso sobre o texto Dois Mil e Desencontros, uma dramaturgia que por não dizer nada com nada, acaba falando muito. A coisa nunca é apenas o que está posto em cena. Não se resume a um diálogo trocado por dois homens. É como os hipertextos, aquilo que é levado ao palco ativa no público mil outras janelas e por aí vai. A obra acaba mesmo sempre aberta. E como matéria para esse jogo, a arte vai se valendo de tudo o que existe e (se não for suficiente) ela traz outros elementos à existência para se fazer acontecer.

Imagem: Allan Taissuke

Os movimentos são uma das características mais marcantes da peça. Por que apostar nessa “dança” dos atores?

Ari: É uma assinatura da direção. Tanto a movimentação no palco, como a manipulação de cenário tem um traço forte da mão do Yuri. Nesse sentido, ele também está em cena com a gente nos adereços e figurinos. No começo, as pessoas comentavam dizendo que era muito forte, marcante, a encenação. Acho que hoje a gente já conseguiu deixar tudo mais orgânico, fluido. O Yuri sabe dar um desenho bonito à cena e foi uma experiência muito importante começar já com a encenação de uma figura tão respeitada na cidade e no País. E é uma dança mesmo, né? Até quando a cena coloca os atores parados.

Qual a sua primeira lembrança do teatro?

Ari: A primeira? Lembro, muito vagamente, de uma peça que a escola me levou para ver no Theatro José de Alencar nos tempos do primário. Nem sei que idade eu tinha, também não lembro de nada do espetáculo. Mas quando entrei lá, muito tempo depois, adolescente, e olhei para os desenhos do teto, o lustre, as galerias, me veio à lembrança daquela experiencia de menino. O espetáculo para aquela criança tinha sido o Theatro. Sobre atuar, me lembro de experiências do tempo de igreja. Teve esse tempo. Fazia contações de histórias para crianças e tinha uns textos adultos também, mais dramáticos, apocalípticos. E eu até cantava (risos). Trago ainda uma solenidade de pisar no palco que me vem muito daí, eu acho. Uma reverência. Depois eu entrei no curso de teatro do colégio e foi dessa época que veio a primeira peça de teatro mesmo, ‘Só Eles O Sabem’ (2006), que a gente dizia na ficha-técnica “construída a partir do encontro de 14 não-atores com uma não-diretora”. Já faz 10 anos…

O que você ainda guarda desse tempo?

Ari: Duas coisas eu guardo desse tempo, também, até hoje. A primeira é uma frase sussurrada que a diretora-professora, minha amiga Alexandra Marinho, disse depois de uma sessão, quando me viu conversar com uns amigos. “A gente nunca deve perguntar se as pessoas gostaram”. Uma aula em uma frase. E a outra, é a ansiedade que me dava quando eu, estudante de ensino médio, via impresso aquele “não-atores” e me perguntava quando eu ia enfim poder dizer que sou um “ator”, ainda hoje eu me pergunto isso.

E o que mudou no seu modo de ver de lá pra cá?

Ari: “O modo de ver…” Bonito isso, né? Não acho que seja o caso de dizer que as experiências específicas com o teatro me fazem melhor que qualquer um. Seria o mais fácil, talvez, mas é romântico demais pra esses meus quase 25 anos (risos). Vou te responder de forma menos fechada, acho que é até mais bonito, como a tua pergunta. Lembro que os meus primeiros óculos de grau chegaram quando estava lendo Iracema, era paradidático na primeira série do fundamental. Tem bastante tempo, mas eu lembro daquela tarde, daquele quarto, daquela experiência. Eu li e não foi só por causa da prova. Aqueles óculos proporcionaram, de forma bem literal, uma experiência estética. As experiências estéticas que a gente vai acumulando ao longo da vida são como esses primeiros óculos, e vocês me perdoem a metáfora piegas, mas se não for isso deve ser algo por aí. Elas mudam nosso “modo de ver”, contribuem com a construção do nosso modo de entender, de compreender a realidade e até possibilitam formas de subverter a realidade (de modos que a ‘realidade’ não seja entendida como única e singular, e, que nesse sentido, há possibilidades de ‘ser’ que estão para além das normatividades impostas por este ou aquele campo do real). No meu caso, acho que a experiência com o teatro ajudou a achar uma possibilidade de caminho bem interessante. Falam em salvação, ou perdição, talvez, graças aos Deuses.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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