Ela já não caminha tão confiante, repete as perguntas, esquece as respostas, troca os nomes e fala palavrões com mais facilidade. A jovem senhora bagunça a rotina, rebelde não aceita remédios, tampouco as fraldas para as incontinências; teima em desobedecer regras que a família tenta impor, logo ela que sempre foi dona da própria vida.

A descrição pode ser de um parente próximo, ou daquele vizinho que vimos escorrer os anos, talvez um conhecido de outra geração que vai se aproximando do primeiro lugar na fila. Eu conto nos dedos uma porção e acredito que você também. Eles ocupam nossos espaços em um amanhã, nesta “previsível” dança do destino.

Uns sofrem mais com o afastamento dos entes, outros se perdem entre a solidão das casas de repouso, ou vivem sob a lembrança de um parente tão imaginário quanto real em seu sentir. Balbuciam coisas em sua tenra inocência, de volta ao casulo que lhes é peculiar nesta temporada. Alguns resistem com mais lucidez, persistindo nesse disparate chamado velhice.

Tomando café em uma tarde da semana e conversando sobre questões de família, ouvi uma frase que vem me acompanhando estes dias: a velhice é uma espécie de loucura. A sentença ficou martelando na cabeça e me fez pensar sobre o lugar da velhice em nossas vidas, se é difícil para nós aceitar esta etapa, ou se nos cabe um peso imenso pela recusa.

Certa tarde, por coincidência (tal o sincronismo da vida), li um emocionante texto da jornalista Eliane Brum, no qual relatava a perda de seu pai amado e o quão doloroso foi o processo no hospital, sem poder se despedir dignamente ou acompanhar a passagem paterna. Eliane disse que “ao entrar num hospital para morrer, deixamos de pertencer a nós mesmos” e lembrou que “o fim de uma vida é ainda vida – e não morte”.

Como se não bastassem os descaminhos da velhice, ainda enfrentamos vários tropeços neste fim, que ainda é vida, como diria Eliane. Uma fase que vem mesmo nos desafiar, misturar os planos e desfazer nossas certezas. Do lado de cá, enquanto não velhos (somente por hoje), assistimos o apagar da chama; do lado de lá, enquanto protagonistas no palco, eles se veem a mercê da interferência alheia, sentindo o corpo murchar, perdendo a autoria da vida. Lembro-me da minha Vó lamentando a aparência da mão, tão cheia de manchas e enrugada, era como se a mão não fosse dela. Não reconhecia o próprio corpo.

É de dar nos nervos ver a vida assim, solta, sem controle. Os fios em curto circuito e a gente querendo remendar o que não tem conserto, o corpo vai envelhecer. Como ouviria naquela tarde de café, cedo ou tarde vamos entrar nesta espécie de loucura. Mas como atravessar tudo isso com dignidade, quando não raro perdemos a compostura e a paciência? Recordo o que eu repetia para mim, enquanto via minha Vó definhar, apesar dos meus cuidados – “é preciso amor, muito amor”!

Ano passado assisti a um tocante documentário, “Alive Inside”, que abordava a temática. A película mostrava o poder da música como recurso para resgatar a identidade dos idosos, principalmente daqueles que sofrem com a ausência advinda do Alzheimer. Foi intenso ver a conexão com aquelas pessoas, antes tão absortas em seu mundo, tornarem-se vivas após simples acordes da juventude. O vigor aflorava quando a música visitava os lugares esquecidos. Afinal, “o fim de uma vida é ainda vida – e não morte”.

No filme, um dos cientistas questiona quem somos nós sem a nossa memória e qual o lugar da velhice no mundo atual. De acordo com ele, os idosos são vistos como uma parte quebrada, após o auge de uma vida adulta, sendo fundamental encontrar de novo o lugar deles no mundo.

O tal cientista apontava ainda para a indústria da velhice e o dinheiro envolvido nesse mercado – lares de idosos, remédios, hospitais, planos de saúde – lembrando-nos do objetivo predominante desses recursos – esconder nossos idosos. De fato, não é prático envelhecer, principalmente quando se tem a saúde tão fragilizada. Não dá para tomar cápsulas milagrosas e fazer o espanto passar. “Ontem ela era tão forte e hoje está acamada…” Ouvimos essas lástimas frequentes.

Para atravessar essa “loucura” muitos varrem os tormentos para baixo do tapete. Mas a vida sempre cobra seu preço e a morte também. Quando o corpo se vai ficam os remorsos do que poderia ter sido e logo será nossa vez na fila. Nos tornaremos protagonistas para qual plateia? É, o corpo pode ir, sempre vai, mas o que fica é humanidade, sem contraindicação, a qualquer tempo, sem prazo de validade.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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