Ilustração: Fabiano Seixas Fernandes

Por Kah Dantas*

Uma noite de luto, seguida por uma manhã de vazio, ambas encerradas nesta carta. Esse foi o tempo, amor, que a dor da sua ausência viveu. E a ela dedico estas linhas, no entanto endereçadas a você, para libertar e eternizar o que deveria ter sido dito em face.

À imagem e semelhança do outro, meu amor, você cumpria fielmente o seu papel shakespeariano: quando estava impaciente, zangado ou magoado, usava a língua feito punhal fundo na carne. E retorcia-o uma, duas, três, quantas vezes fosse necessário e prazeroso para o seu gozo de algoz, sem perceber ou se importar com o meu sangue que rebentava.

Acredite quando eu digo que o combate o deixava em frêmito, da aniquilação desta sua despercebida inimiga, e que você salivava feito um cão encegueirado e raivoso pelo ataque sem razão de ser. Você era incapaz de enxergar.

Não foi esse, meu bem, o eterno retorno que você me prometeu.

Foram tantas as vezes em que você foi covarde me amando, bailando com meus sentimentos ao som de delicadas e cantantes marchas fúnebres, que eu acabei por me acostumar, até alegremente, com suas sobras pretensiosas.

Eu merecia mais, você sabe.

E quando você me tomou por Desdêmona pela última vez, foi então que eu acordei, meu caro Bentinho, do sonho indigno no qual eu continuamente me debruçava sobre os seus medos, para tentar entendê-los quando nem mesmo você fazia questão disso.

Você nunca esteve comigo e nós nunca estivemos juntos. Fui fantasma e assombro no seu coração de mouro enciumado, e a sua covardia me acorrentou para sempre a essa condição etérea, indecente e luxuriosa, quando a minha carne estava aqui, sangrando e palpitando pela sua. Somente a sua.

Você se desculpou, é claro. Mas foi covarde até o fim, quando eu precisei, depois de ouvir de você que me amava, mas alguma coisa, despedir-se por nós dois, para alívio mútuo dos nossos espíritos.

A vida era boa sem você. E voltará a sê-lo depois da sua frouxa, mas oportuna deserção.

Minha mãe me contou, veja só, que minha avó a contou que coração é terra que ninguém anda. E eu sei que enquanto eu tinha certeza de ter aberto o meu e feito de você legítimo convidado para visitar mesmo os lugares longínquos e sombrios, você não me deixou sequer entrever a aridez do seu.

Mas isso já não importa. No final, estamos todos sós. E em meio aos mais esperançosos suspiros niilistas, permaneço atenta àquele velho e lídimo ditado: antes só do que mal acompanhada. É isto.

Sem amor,

Sua Capitu.

***

Kah Dantas

é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.

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Fabiano Seixas Fernandes

é ilustrador, tradutor e poeta. Fundador da tradizer: serviços de tradução. Entre 2012 e 2015, publicou o blogue pequeninos (poesia autoral); publica o podcast quase uma Bethania (recitação de poesia). Traduziu poemas de John Milton para o português (L’Allegro, Il Penseroso, excertos de Comus e Paradise Lost).

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