Marcelo Soares, comentarista político da MTV, e que mantém o interessante blog E você com isso?, deixou comentário, que reproduzo abaixo, na postagem “A paranóia sobre a mídia”.

Ele  indica o artigo “A mídia e o triunfo da cultura idiota”, do jornalista americano Carl Bernstein (parceiro de Bob Woodward na investigação do escândalo de Watergate). O texto, orginalmente publicado no The Guardian (Londres), em 1992, foi traduzido por Marcelo e divulgado no Observatório da Imprensa.

Escreveu Marcelo a respeito da minha postagem “A paranóia sobre a mídia”:

“O que eu acho mais engraçado, ao ver que a paranóia antimídia foi encampada pela esquerda, é lembrar que os patronos da técnica são ninguém menos do que Richard Nixon e Ronald Reagan. Recomendo vivamente a leitura de “A mídia e o triunfo da cultura idiota”, artigo de Carl Bernstein traduzido por mim, que conta a gênese disso.”

O artigo a que se refere Marcelo está na sequência.
A mídia e o triunfo da cultura idiota
Carl Bernstein

Publicado em 3/6/92 no The Guardian, Londres; tradução de Marcelo Soares (reproduzido do Observatório da Imprensa)

Já se passou quase uma geração desde o drama iniciado com a invasão em Watergate e terminado com a renúncia de Richard Nixon, vinte anos inteiros em que a imprensa americana engajou-se em um estranho frenesi de autocongratulação e estado de defensiva sobre sua performance naquele caso e depois.

A autocongratulação não se justifica; o estado de defensiva, esse sim. Porque cada vez mais a América retratada hoje na mídia americana é ilusória e decepcionante – desfigurada, irreal, desconectada do verdadeiro contexto de nossas vidas. Ao cobrir a verdadeira vida americana, a mídia – a cada semana, dia, hora – quebra novos recordes de entender tudo errado. A cobertura é distorcida pelas celebridades e pela adoração das celebridades; pela redução do noticiário à fofoca; pelo sensacionalismo, que sempre é um afastamento da condição real da sociedade; e põe um discurso político e social de que nós – a imprensa, a mídia, os políticos e o povo – estamos virando uma cloaca.

Vamos voltar a Watergate. Há uma lição lá, particularmente sobre a imprensa. Há 20 anos, em junho de 1972, Bob Woodward e eu começamos a cobrir o caso Watergate para o Washington Post. Na época da invasão, havia cerca de 2 mil repórteres trabalhando em tempo integral em Washington. Nos primeiros meses após o caso, as organizações noticiosas da América destacaram apenas 14 daqueles 2 mil homens e mulheres para cobrir o caso Watergate em tempo integral. E, desses 14, apenas 6 estavam destacados para cobrir a matéria de uma forma que se pode chamar de “investigativa”, ou seja, ir além do registro das mais óbvias declarações do dia e procedimentos da corte, e tentar descobrir exatamente o que havia ocorrido.

Apesar de uma certa mitologia que surgiu em torno do “jornalismo investigativo”, é importante lembrar do que fizemos e do que não fizemos em Watergate. Porque o que fizemos não era, na verdade, exótico. Nosso trabalho ao revelar a história estava enraizado no tipo mais básico de reportagem policial empírica. Confiamos mais no trabalho de sola de sapato e no bom senso e no respeito à verdade do que em qualquer outra coisa.

Woodward e eu éramos dois caras da editoria Metro (cidades) destacados para cobrir o que, na base, ainda era um roubo. Então, aplicamos as únicas técnicas de reportagem que conhecíamos. Batemos em algumas portas, fizemos um monte de perguntas, passamos um tempão ouvindo: a mesma coisa que bons repórteres fazem há anos. Como repórteres locais, não tínhamos fontes altamente colocadas, nem verba para almoçar com os poderosos em restaurantes chiques. Fizemos nosso trabalho longe do mundo encantador dos ricos, famosos e poderosos.

Assim fizemos nosso caminho, entrevistando assessores, secretárias, assistentes administrativos. Nós os encontramos fora de seus escritórios e em casa, à noite e nos finais de semana. Os promotores e o FBI entrevistaram as mesmas pessoas que nós, mas sempre nos escritórios, sempre na presença de advogados da administração, nunca à noite, nunca em casa, nunca longe do trabalho, da intimidação, das pressões. Não surpreendentemente, o FBI e o Departamento de Justiça chegaram a conclusões opostas às nossas, ao decidir não triangular peças-chave de informação, porque eles partiam do que o então diretor interino do FBI chamava de “presunção de regularidade” a respeito dos homens que cercavam o presidente dos EUA.

Mesmo nossos colegas da imprensa não levavam a sério nossas reportagens, até que nossa metodologia levou a informações extraordinárias: um conto de espionagem e sabotagem política, sistemática e ilegal, dirigida a partir da Casa Branca, além de verbas secretas, grampo telefônico, uma equipe de “encanadores” – ladrões – trabalhando para o presidente. E daí a farsa toda, uma obstrução da justiça que se estendia até o próprio presidente.

É importante lembrar da resposta do governo Nixon em Watergate. Eles preferiram questionar a conduta da imprensa, ao invés da conduta do presidente e de seus homens. Dia após dia, a Casa Branca de Nixon liberava o que viemos a chamar de “não-negação”; pedia para comentar o que escrevemos. O secretário de imprensa Ron Ziegler, o líder da minoria na Câmara Jerry Ford ou o líder republicano no Senado Bob Dole nos acusavam de abastecedores do diz-que-diz, de assassinar reputações, e faziam insinuações sem nunca tocar no que nossas matérias diziam.
Ao invés de desaparecer depois do Watergate, a técnica nixoniana de transformar a imprensa no assunto ganhou novos patamares de esperteza e cinismo durante a administração Reagan, e floresce hoje. Daí a declaração de Reagan sobre os tristes eventos que devastaram sua presidência no caso Irã-Contras: “O que me faz subir as paredes é que isso não era um problema até que a imprensa pegou uma dica naquele pasquim de Beirute e começou a encher a bola. A coisa toda acaba numa grande irresponsabilidade por parte da imprensa”.

Agora, com George Bush [pai], temos outro presidente obcecado com vazamentos e sigilo, um presidente que não entendia por que a imprensa achava que era notícia revelar que seus homens armavam uma falsa apreensão de drogas na Lafayette Square, do outro lado da rua da Casa Branca. “Do lado de quem vocês estão?”, ele perguntou. Essa era uma questão legitimamente nixoniana. Esse desprezo pela imprensa, passado para centenas de funcionários públicos que hoje têm mandatos, pode ser o mais importante e duradouro legado do governo Nixon.

Em retrospecto, a extraordinária campanha de Nixon para minar a credibilidade da imprensa teve um sucesso memorável, apesar de toda a pose de nossa profissão depois do Watergate. Teve sucesso muito por causa de nossas próprias deficiências óbvias. O fato duro e simples é que nossa reportagem não tem sido boa o suficiente. Não era boa durante os anos Nixon, piorou nos anos Reagan e não está melhor agora. Somos arrogantes. Falhamos em abrir nossas próprias instituições na mídia ao mesmo tipo de escrutínio que exigimos de outras poderosas instituições da sociedade. Não somos nem um pouco mais dispostos ou graciosos ao reconhecer erros ou maus julgamentos do que os canalhas do Congresso e criminosos burocráticos que passamos tanto tempo apurando.

O maior crime do negócio da notícia hoje é ficar para trás ou perder uma grande matéria. Então, a velocidade e a quantidade substituem a perfeição e a qualidade, a exatidão e o contexto. A pressão para competir, o medo de que alguém vá dar primeiro a notícia, cria um ambiente frenético onde uma nevasca de informações é apresentada e questões sérias não podem ser levantadas: e mesmo naquelas bem-aventuradas instâncias em que tais questões são feitas (como aconteceu depois de algumas das notórias matérias sobre a família Clinton), ninguém passou meses trabalhando para verificar e respondê-las corretamente.

Reportagem não é estenografia. É a melhor versão da verdade possível de se obter. As tendências realmente significativas no jornalismo não têm ido em direção a um compromisso com a melhor e mais complexa versão da verdade possível de se obter, não em direção a construir um novo jornalismo baseado em reportagens sérias e refletidas. Essas não são as prioridades que saltam para o leitor da maior parte de nossos jornais, nem o que o espectador recebe quando liga nos noticiários.

“Bem, foi mesmo a melhor transa que você já teve?” Essas foram as palavras de Diane Sawyer em uma entrevista com Marla Maples no Prime Time Live, da ABC News (onde “mais americanos conseguem suas notícias do que qualquer outra fonte”). Essas palavras marcaram uma nova baixa. Por mais de 15 anos temos fugido do jornalismo de verdade em direção à criação de uma cultura fracote do infotenimento, em que as linhas entre Opra, Geraldo e Diane, entre o New York Post e a Newsday, muitas vezes não se distinguem. Nessa nova cultura de excitação jornalística, ensinamos aos leitores e telespectadores que o trivial é significativo, que o melodramático e bizarro são mais importantes que notícias de verdade. Não servimos a nossos leitores e espectadores, nós os alcovitamos. E condescendemos a eles, dando o que achamos que eles querem e o que calculamos que vá vender e levantar nossa audiência e quantidade de leitores. Muitos, tristemente, parecem justificar nossa condescendência, e se entusiasmam com o lixo. Ainda assim, o papel dos jornalistas é desafiar as pessoas, não apenas agradá-las.

Estamos no processo de criar o que merece ser chamado de cultura idiota. Não uma subcultura idiota, que toda sociedade tem borbulhando sob a superfície e que pode trazer diversão inócua; mas a própria cultura. Pela primeira vez, o esquisito, o estúpido e o grosseiro estão se tornando nossa norma cultural, até mesmo nosso ideal cultural.

Não quero aqui atacar a cultura popular. O bom jornalismo é popular, mas é cultura popular que amplia e informa seus consumidores em vez de apelar para o cada vez mais baixo menor denominador comum. Se, por “cultura popular”, queremos designar expressões de pensamento ou sentimento que não requerem trabalho daqueles que a consomem, então o jornalismo popular decente já era. O que ocorre hoje, infelizmente, é que a mais baixa forma de cultura popular – a falta de informação, a desinformação e um desprezo pela verdade ou pela realidade da vida da maior parte das pessoas – atropelou o jornalismo real. Hoje, os americanos normais estão sendo entupidos de lixo.

Não se fala aqui da Primeira Emenda ou da livre expressão. Num país livre, somos livres para o lixo, também. Mas o fato de que o lixo sempre vá encontrar vazão não significa que devamos fornecer essa vazão. E os grandes conglomerados da informação neste país estão agora no negócio do lixo. Todos conhecemos a pornografia quando a vemos, e ela tem direito de existir. Mas nem todos temos que ser editores pornô; e dificilmente haverá alguma empresa de mídia nos EUA que não tenha mergulhado o dedão do pé no equivalente social e político do negócio pornô nos últimos 15 anos.

Sim,  sempre tivemos os tablóides, a imprensa popular, sensacionalista e amarela; e sempre tivemos colunas de fofocas. Mas nunca antes tivemos algo como a situação atual, em que pessoas supostamente sérias – ou seja, as assim chamadas elites sociais e culturais deste país – vivem e morrem por (e acreditam em) essas colunas e esses programas, e outros milhões as têm como suas fontes primárias de informação.

Pelos oito anos da presidência Reagan, a imprensa não conseguiu compreender que Reagan era um líder de verdade – por mais que ele parecesse estar dormindo em serviço, por mais que seu intelecto fosse raso. Nenhum líder desde Roosevelt mudou tanto a paisagem americana ou teve sua visão do país e do mundo tão completamente implantada. Mas, nos anos Reagan, nós da imprensa raramente saímos de Washington para olhar a relação entre políticas públicas e legislação e as decisões judiciais para ver como as políticas de seu governo estavam afetando o povo – as crianças e adultos e as instituições dos EUA; na educação, no local de trabalho, nos tribunais, na comunidade negra, no salário da família. Enquanto a gente ridicularizava a retórica do Reagan sobre o “império do mal”, deixamos de fazer a conexão entre as políticas de Reagan e a vontade de Gorbachev de afrouxar o vício do comunismo.

Agora estamos começando a saber o que houve. Perdemos, de fato, a maior parte das grandes matérias de nossa geração, do Irã-Contras à debacle da poupança e dos empréstimos.

As falhas da imprensa contribuíram imensamente para a emergência de um país do talk show, em que o discurso público é reduzido a resmungos, ataques e poses. Agora temos uma grande imprensa cuja agenda noticiosa é cada vez mais influenciada por esse mundo vazio. No dia em que Nelson Mandela retornou a Soweto e os aliados da Segunda Guerra Mundial concordaram com a unificação da Alemanha, as primeiras páginas de muitos jornais americanos “responsáveis” eram devotadas ao divórcio de Donald e Ivana Trump.

Agora, a apoteose dessa cultura do talk show está diante de nós. Eu me refiro a Ross Perot, um candidato criado e sustentado pela TV, lançado no Larry King Live e cuja disponibilidade para vociferar e fazer pose está muito menos sintonizada com as obras da democracia liberal do que com os sumos palpiteiros dos programas de bate-papo na TV, um candidato cuja única proposta substantiva é substituir a democracia representativa por um talk show ao vivo na TV para o país inteiro. E esse candidato, que escapou de todo o escrutínio da mídia com declarações sem-vergonha de sua própria ignorância, ganha hoje dos candidatos dos dois partidos nas pesquisas em diversos estados.

Hoje, a matéria mais interessante do mundo é a condição dos EUA. Nosso sistema político está em uma crise profunda; estamos testemunhando a falência da civilidade e da comunidade que no passado permitiram que a democracia americana florescesse. O advento do país do talk show é parte dessa falência.

Muitas suposições comuns na América – sobre raça, economia e o destino das cidades – precisam ser desafiadas, e devemos começar pela mídia. Porque, depois da raça, a história da mídia americana contemporânea é a grande matéria que não foi escrita nos EUA de hoje. Devemos começar perguntando à imprensa as mesmas questões fundamentais que levantamos sobre outras instituições poderosas desta sociedade – sobre a quem ela serve, padrões, auto-interesse e seu eclipse do interesse público e do interesse da verdade.

A realidade é que a mídia é provavelmente a mais poderosa de nossas instituições hoje; e ela está esbanjando seu poder e ignorando sua obrigação. Ela – ou, mais precisamente, nós – abdicou de sua responsabilidade, e a conseqüência dessa abdicação é o espetáculo e o triunfo da cultura idiota.

Carl Bernstein é jornalista, parceiro de Bob Woodward na investigação do escândalo de Watergate, em 1972, para o diário The Washington Post