Esta é a 10ª história sobre o cangaço do livro “No tempo de Lampião”, de Leonardo Mota, no próximo domingo, conclui-se a série.

Saiba mais sobre Leonardo Mota e as hisórias que venho publicando:

O príncipe; Para tirar a raça; O castiçal; Quem escreveu a patente de Lampião;
A morte do Jararaca; O troféu; Brincadeira de Homem;
A prisão de Antônio Silvino; Um precursor de Lampião.

O texto que se segue mostra que mestre Leota, mesmo considerando Lampião um bandoleiros – não um “bandido social” – não compactuava com as arbitrariedade da polícia que lhe dava perseguição e nem lhe aliviava cíticas aos agentes do governo.

Fique com:

Lampião e seus perseguidores

Enrolei o meu cigarro de palha e pedi ao fazendeiro em cuja casa me hospedara me dissesse o que pensava das polícias que dão combate aos cangaceiros. Ele entupiu as ventas com uma pitada de “torrado” rescendente a cumaru, limpou o bigodão com a manga da camisa, aprumou-se na tripeça e não tardou em me dizer:

– Quero mais ante me ver neste ôco de mundo, às volta com bandido que com soldado de poliça. Me creia que os mata-cachorro, quando sai da capital, vem com o pensamento fixe em que todo matuto protege cangaceiro. Querem, por fina força, que a gente descubra o roteiro dos criminosos. Se o freguês diz que ignora, apanha pra descobrir; se descobre, também apanha, porque é sinal que, conhecendo, protege quem eles caçam. Não tem pronde correr: ninguém escapa…

– E os bandoleiros?

– Abém, esses estão no seu papel. Assim mesmo, tem vez que a questão é se saber tirar eles com jeito. A não ser um ou outro cabra desalmado, eles só fazem mal a nós quando andam aperreados pela poliça, quando desconfiam que se deu notiça deles à tropa do Governo, ou quando, precisando de dinheiro, sabem que o sabagante tem em casa, mas não dá porque não quer.

– Admiro-me de o Sr. falar assim: tenho sabido e apurado tanta crueldade de Lampião…

– Sim, me entenda: eu falo do tempo de Antônio Silvino, Luís Padre, Sebastião Pereira e outros, pois esse tal de Virgolino, com a graça de Maria Santíssima, nunca me apareceu aqui, não. Vejo se dizer que esse Lampião é um satanás de perverso…

– Mas, se os policiais cometem absurdos, por que os senhores não os denunciam às autoridades?

– Só se se fosse maluco! Ter questão com soldado é ter questão co Gunverno e ter questão co Gunverno é não ter amor à vida. Um Tenente no sertão manda mais que um Juiz de Direito. Se dependesse de mim, o Gunverno não mandava força pro interior. A gente ficava só com os cangacero, era só uma desgraça, em vez de duas. Quer que lhe seja franco? Muito desprepósto, muito abissurdo que se cuida, por aí afora, que foi feito por cangacêro, uma óva: foi, mas foi pela poliça!

– Por que, neste caso, os senhores não tratam de restabelecer a verdade?

– Está doido? A gente se cala, porque não vê que é muito mais fative a poliça se vingar que os bandidos? Cangacêro não lê jornal e, quando enfia o pé na apragata e bota a espingarda na cacunda não é pra dar satisfação de seus ato a ninguém. Com a gente do Gunverno já não é assim, o negócio fia mais fino. Me lembro como se fosse hoje: Luís Padre e Zé Danta se danavam toda vez que sabiam que estavam botando pra eles safadeza de soldado. Se danavam e tratavam de não gozar fama sem proveito. Meu senhor, escreva o que lhe digo: só depois que essa história de perseguir criminoso se tornou uma pechincha, um negoção da China, foi que os cangacêro deram pra pegar no alêio. Eles só róbam porque se não robarem, a poliça róba e diz que foi eles.

– De fato. O povo aponta a dedo oficiais de polícia que estão ricos e cuja fortuna não pode ter sido feita pelo magro soldo.

– E apois? Viver destacado no sertão pra eles é um pão com dois pedaços. Andam eguando por aqui e voltam pra beira do mar com os bolsos recheados. Mas isso é uma coisa que até está entrando pelos olhos da humanidade: ninguém é besta pra negar comida, roupa, cigarro ou cachaça a cangacêro. Pra que diabo, então, é que bandido quer dinheiro? Só pode ser para comprar a poliça que lhe arranja munição, ou o chefe que lhe dá coito. Já se deu o caso de um capitão e um tenente desenterrarem um cabra que tinha sido sacudido na cova com dezesseis contos de réis amarrados na barriga, por baixo da celoura. Pouco se embaraçaram com a fedentina, queriam era o cobre, pra desmanchar em cerveja…

– Em que consistem os abusos cometidos pela polícia, aos quais o Sr. se referiu, ainda há pouco?

– Em toda versidade de endimunhamento. Começa porque, ou porque o Guverno não despacha eles com dinheiro pra se mexerem dum logar pra outro, ou porque preferem papar o dinheiro que trouxeram, são uns ciganos, meu Sr.!, são uns ciganos pra se apossarem de cavalo e burro alêio. E não fica só nisso: açoitam, prendem, judiam, desonram, matam, tocam fogo, róbam, fazem tudo quanto é espritação do demônio. Imitam os bandidos desde o procedimento até os traje, e o modo presepeiro de se armarem. Viu um soldado em diligença, dê por visto um cangacêro: chapeuzão quebrado na testa, lenço encarnado no pescoço, não sei quantas cartucheira, punhalzão à vista de quem não for cego dos olho. Inda têm um respeitozinho andando de farda e de perneira, quando moram em beira de estrada de ferro. Sairam de lá, já sabe pra que é…

– O Sr. acha que as polícias têm mesmo vontade de extinguir o banditismo?

– Conversa! Isso é história pra menino dormir sem ceia. Então, eles hão de querer acabar com o meio de vida deles? É exato que eu conheço oficiais que me parece que só não brigam porque não acham com quem. Mas a maioria querem é que fuzuê continue, prêles poderem levar a vidoca de que gostam. No tempo de Antônio Silvio, eu achava até graça. Estava-se aqui em casa na santa paz de Deus quando, de repente, a meia-légua de distância, se escutava o estralo da corneta. Ora, o que era isso senão um aviso pros bandidos se aquetarem nas moitas e deixarem os paricêros deles passar em paz? São assim covardes, não querem topar com quem perseguem, mas fazem o justo pagar pelo pecador. O que mais raiva me faz é saber que só os pobres sem defesa é que padece. Duvido que eles vão tirar paluxio em Juazeiro ou em Princesa, fazendo com o Major Zé Pereira ou com o Padre Ciço aquilo que fazem com nós!

Fez uma pausa o sertanejo, cujo nome e residência não cometo a imprudência de declinar, poupando-o destarte a vinditas seguras. Voltou a “tabaquear o caso” e estrondou os ares com forte espirro. Recompus a conversação:

– O Sr. acredita que Lampião, algum dia, seja preso?

– Homem, do gosto que vão as coisas, eu tenho pra mim que vai tudo errado. Fique ciente que duzentos homens não o pegam, nem que…

– Duzentos? Ele já rompeu um cerco de quinhentos…

– Apois, com mais véra, é o que eu digo: duzentos, quinhentos, mil soldado não dão sumiço a ele, mas um home, um só, dá. A questão é o Gunverno prometer um bom prêmio em dinhêro. Dum dia pra outro, quando ele menos esperar, ele leva um tiro sem saber donde saiu…

– Isso não resolveria o problema. Deve-se extinguir o banditismo e não exterminar Lampião. A morte dele não acabaria com o cangaceirismo. Outros Lampiões haveriam de surgir, assim como outros Cabeleiras, outros Silvinos apareceram.

– Eu bem sei que, Lampião morrendo, só por isso o cangaço não se acaba. Mas, diminui! A liberdade em que ele vive é que não está direito, é uma coisa fora do termo e regra. Muito rapazinho ignorante, fogoso e ruim de nascença se mira no exemplo de Virgolino impune e se desencabeça, afivelando a cartulheira e se perdendo no cangaço. Os Guverno, nestes últimos dez anos, não têm gasto centenas de contos de réis só por causa desse excomungado? Apois prometam uma boa bolada a quem der conta dele, vivo ou morto, e eu mostro se ele está ou não de obras cortadas. Se estivesse nas minhas mãos, ele era preso e não morto. Há quem diga que morrer é o que ele quer, tanto assim que não se separa dum frasco de veneno. É pena, porque deverá tomar era galés perpétua, não só pra purgar os crime que tem praticado, mas também pra, quando se visse debaixo de chave, perder a cerimônia e desmascarar muito oficial e chefão a quem deu dinhêro. Mas eu penso que ele é passado no fuzil, se for poliça que o agarre. É preciso ele levar pra sepultura um magote de segredo que só ele e Deus é quem sabe…

– E por que a polícia não matou Antônio Silvino?

– Bom, o caso aí é diferente. Silvino não morreu, por via de duas coisa: primeiro, porque o ferimento não foi mortal; depois porque andava na tropa um inimigo dele, o Sargento Zé Alvino de Queiroz, que queria era que ele tirasse sentença e acabasse o resto dos dias na cadeia. Assim mesmo, Silvino quase leva o diabo. Cadê que deram voz de prisão a ele? Foram chegando e metendo a bala com vontade…

Um menino aparece e adverte:

– Meu padrim, minha madrinha manda dizer que entre pra dentro mais o home, que a janta está na mesa.

Ergueu-se o fazendeiro e convidou-me:

– Boas falas! Vamos aos pirões!

A caminho do “escaldado de capão”, ainda me disse:

– É, meu senhor, o que o dinhêro não fizer neste mundo nada mais faz! O Sr. se convença que só o que dá certo é o negóço do Gunverno garantir um prêmio, dando carta branca pra se prender ou matar Lampião. Se pegarem ele vivo, tanto melhor. Se o jeito for liquidar com ele, deixa liquidar! Então, uma onça, me estando dando cabo das criações, eu vou deixar de matar ela, porque, se matar, não acabo com a onçada toda?

E, afinal, num arranco de despedida, como se antevisse a perda da fala, quando entrasse no mastigo:

– O cangaço tem de durar enquanto os Gunverno quiserem amizade com chefe matuto que faz o júri absolver criminoso…