Clique para ampliar

Um do livros que eu sempre recomendo aos visitantes do O POVO que levo à loja das Edições Demócrito Rocha é “Orson Welles no Ceará” (2001), de Firmino Holanda. Fazia-o pelo interesse do tema, mas confesso: sugeria sem ter lido o livro.

Isso até hoje. Peguei o livro ontem à noite, li-o pela metade e completei a leitura hoje – pois é impossível começar o livro sem ficar com vontade de lê-lo todo.

Galegão legal

Fruto de uma ótima pesquisa, mas sem o ranço academicista, Firmino nos leva a conhecer a passagem de Welles pelo Ceará; dá um passeio pela Fortaleza da década de 1940, mostra como a imprensa cobriu a chegada do “Napoleão do cinema”, o “Galegão legal” – e ainda faz pertinentes observações sobre a clima político da época e a política da “boa vizinhança”, levada a cabo pelos americanos no período da Segunda Guerra.

É nesse contexto que Welles – já famoso por “Cidadão Kane” – chega ao Ceará para filmar seu “It´s all true” (é tudo verdade): uma saga vivida por quatro jangadeiros – Manuel Olímpio Meira (o Jacaré, líder dos pescadores), Jerônimo André de Souza, Raimundo Correia Lima (o Tatá) e Manuel Pereira da Silva (o Manuel Preto).

Em 1941 eles partem da Praia do Peixe (hoje Praia de Iracema) na jangada São Pedro com destino ao Rio de Janeiro (então capital da República) para levar reivindicações dos pescadores diretamente ao presidente Getúlio Vargas. Depois de navegar durante 61 dias, um percurso de 2.381 km, sem bússola e sem carta de navegação – eles chegam ao Rio, onde são recebidos triunfalmente.

Coisas que eu não sabia sobre a película e aprendi com o livro de Firmino

1. O filme era de episódios, um para ser rodado no México e dois no Brasil (a saga dos jangadeiros e outro sobre o carnaval).
2. O episódio sobre os jangadeiros não seria um documentário propriamente dito, mas uma “recontagem” da aventura que começa, no filme, com uma história de amor.

A outra é que eu pensava que Welles já viera fazer a filmagem com seu famoso espírito rebelde e iconoclasta. No entanto, ele veio a serviço da “política da boa vizinhança”, da qual ele se considerava um representante.

Boa vizinhança

Mas é óbvio que o talento do diretor não se enquadraria na bitola política – nem do Estado Novo e nem dos interesses particulares dos Estados Unidos – e o conflito seria inevitável, o que levou a que Welles nunca pudesse completar o filme.

Aos americanos interessava um Brasil idealizado: os executivos da RKO (a produtora) reclamavam que Welles só filmava “negros pulando” (referência ao episódio do Carnaval); o ditador Getúlio Vargas, tampouco queria que o mundo visse um Brasil mestiço, com pescadores vivendo em casas de pau-a-pique.

Vinícius de Morais

No livro comparece também o poeta Vinícius de Morais, como um verdadeiro tiete de Welles. O capítulo “O papel político de Orson Welles” mostra como era entranhado o preconceito contra negros e mestiços na sociedade brasileira – e sobra até para Vinícius de Morais, que atuava como censor do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda).

Firmino reproduz um dos pareceres justificando a proibição de um documentário sobre o ensino, no qual o poeta se refere pejorativamente aos alunos “pretinhos” de uma escola. [Mas Firmino informa também que o “conservadorismo” de Vinícius “dissipou-se” sob a influência de Waldo Frank, um intelectual americano de esquerda.]

Jacaré

O mais trágico da aventura de Welles no Brasil foi a morte de Jacaré, quando o diretor reproduzia a chegada dos quatro pescadores no Rio de Janeiro, com eles mesmos atuando como atores. Um forte onda faz a jangada virar: Jerônimo, Tatá e Manuel Preto se salvam. O corpo de Jacaré nunca será encontrado.

Supõe-se que ele tenha batido a cabeça no casco da jangada, pois os quatro eram exímios nadadores.

Livro

A obra de Firmo é recomendada para aqueles que gostam de cinema, para os que gostam de história, para os que gostam de ver revelados fatos sociais muitas vezes desprezados pela historiografia “oficial” e também para aqueles que gostam de ler um livro bem escrito. Portanto, para todos os leitores.

Indicação

Adriano Macedo, via Twitter, me indicou vídeo no Youtube que mostra trecho do episódio dos jangandeiros, com o título de “Four man on a raft” (quatro homens em uma jangada), que revela a habilidade de Welles na captação de imagens e dá uma ideia do que poderia ter sido o filme caso ele tivesse montado. A cena mostrada é uma das que Firmino Holanda comenta no livro Veja aqui.