Clique para ampliar

Acabei de ler “Religião para ateus”, no qual o filósofo Alain de Botton (“ateu obstinado”) defende que as religiões  têm aspectos que deveriam ser utilizados no mundo secular. No livro, ele se detém a analisar principalmente os ritos da igreja católica e do budismo.

A questão não é saber se Deus existe

Logo no começo, um alerta: “Este é um livro para pessoas incapazes de acreditar em milagres, espíritos ou histórias de sarça ardente…”, mas que “a real questão não é saber se Deus existe ou não, mas para para onde leva a discussão ao se concluir que ele evidentemente não existe”.

Religião secular

A partir daí, Botton conduz o leitor pelas práticas religiosas sugerindo adaptá-las ao mundo secular, de modo a educar o homem no senso de “comunidade”, para a “gentileza”, “educação”, “arte”, “arquitetura”, o ser e estar no mundo – e outras questões cruciais que, na visão dele, são apropriados pelas igrejas constituídas (as palavras entre aspas são títulos de alguns capítulos do livro).

Leon Trotsky

Lembrei-me de um livro de Leon Trotsky,  “Questões do modo de vida” (1923), no qual um dos principais líderes da Revolução Russa já abordava questões parecidas, incluindo capítulos como títulos equivalentes aos quais Botton usa mais de 80 anos depois. Trotsky, como Botton, sabia que os homens precisam de rituais: se lhe tiram a religião, algo precisa ser posto no lugar. Trotsky – como Botton – se perguntava – e fazia sugestões – sobre que instituições poderiam ocupar o lugar que até então fora da igreja.

Hábito de beber

Trotsky preocupava-se com o hábito de beber dos russos, da facilidade com que falavam palavrões (comum a todas as classes) e com a família. Título de alguns dos capítulos do livro de Trotsky: “Da antiga à nova família”, “A família e os ritos”, “As atenções e a delicadeza como condições necessárias para relações harmoniosas”.

Arte

Alain de Botton escreve: “O cristianismo […] nunca nos deixa qualquer dúvida sobre para que ser a arte: é um meio para nos lembrar daquilo que importa”. E Botton diz que o mundo secular deveria fazer o mesmo, dando à arte uma “missão educativa, terapêutica”. Trotsky já escrevera: “O êxito[…] deve-se não às qualidades artísticas da obra, mas a forma ‘comunista’ de encarar a vida que nela descreve”.

Rituais pagãos

Botton propõe vário rituais, com a devida dispensa dos deuses – como uma saudação à primavera, por exemplo – para substituir os ritos religiosos. Trotsky já escrevera: “No homem, a necessidade de espetáculo — ver e ouvir qualquer coisa de não habitual e de colorido, qualquer coisa para além do acinzentado do quotidiano — é muito grande, é irremovível e persegue-o desde a infância até à velhice” – dizendo que os comunistas tinham de substituir o papel ocupado pela igreja de oferecer isso ao homem soviético.

Líder supremo

Por um lado, é certo que vivemos em um mundo hedonista, egoísta e individualista: para uns é necessário freio, outros se  ressentem das mazelas; muitos refugiam-se nas religiões para ter algum conforto – inclusive para a finitude da vida, pois todas as religiões prometem a vida eterna e perfeita.

O problema é que a prática de uma “religião secular” pode levar a distorções como um Estado artificial da Coreia do Norte, que provoca arrepios só de ver as imagens na televisão, terminar com um partido tornando-se uma nova igreja e o seu “dirigente máximo”, transformado em um ser que ganha apodos como “guia genial dos povos”, “supremo líder”, “fuher” ou coisa que o valha.

De qualquer modo, é interessante ler o livro de Botton (editora Intrínseca). Propicia boas reflexões.