Livro BastideOutros falarão sobre o dinamismo de um povo voltado para o futuro, os melhoramentos surgidos no domínio da agricultura, a pesquisa do petróleo e minerais, o movimento dos portos, das escolas, dos hospitais e das creches. Na verdade, também eu admiro aquelas construções-modelo, aquelas fábricas, e o progresso rápido do Nordeste. Mas o importante é, ao progredir, não perder sua alma, a própria alma que os antepassados modelaram. Era ela que me interessava, será sobretudo em sua direção que eu caminhava. Por isso divaguei, sonhei nas velhas igrejas, imiscuí-me aos candomblés, perdi-me no carnaval. E dessa viagem encantada apresento aqui um feixe de imagens.

Roger Bastide

[Bastide, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro: “Seção de Livros” de Empresa Gráfica “O Cruzeiro” S.A., 1945, p. 9].

Quem tem lido os textos que posto neste blog sabe que sou um grande admirador de Roger Bastide. Aliás, retifico a afirmação: não sou apenas um admirador, sou um fã declarado. O sociólogo foi um dos integrantes do grupo francês que veio ao Brasil em 1938 para compor o quadro de professores da recém-criada USP. Não tardou muito para que se tornasse um apaixonado pelo país. Aqui Bastide encontraria um campo fértil de estudos, que lhe forneceriam elementos para diversas publicações. Fascinado pelo candomblé, muito mais que apenas um estudioso dessa tradição religiosa africana trazida para o Brasil, Bastide se tornaria, a exemplo do que aconteceu com Pierre Verger, um iniciado.

Roger Bastide era um poeta. Fazia antropologia e sociologia como quem faz

Roger Bastide numa festa dedicada a "Yemanjá". (Foto: Diários Associados. Fonte: Imagens do Nordeste místico em branco e preto.

poesia. Leio seus textos com inenarrável deleite poético. Depois de estudar em profundidade o candomblé da Bahia, o sociólogo realizou estudos também em Recife. Não precisou muito para que se visse tomado de fascínio pelo Nordeste brasileiro. O que o atraía era, sobretudo, o misticismo peculiar ao povo nordestino. Por isso, além do candomblé, adentrou também a religiosidade popular, participando de procissões e visitando igrejas. Também os maracatus, tradição tipicamente nordestina, foram objeto de interesse do pesquisador.

A consequência dessa exploração pelos meandros das tradições místicas do Nordeste seria a publicação, em 1945, do livro Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Tenho um exemplar desse livro que, para mim, tem um valor especial, pois pertenceu à biblioteca particular do prof. Aderbal Freire, me tendo sido presenteado por sua filha, minha amiga Dulce Freire. Nele, Bastide comenta suas incursões pelos terreiros de candomblé da Bahia, pelas igrejas de Salvador e Recife, pelas procissões e maracatus. Há trechos que, por mais que eu leia, sempre me fazem experimentar a mesma emoção de quando os li pela primeira vez, a começar pelas palavras com que o autor abre o primeiro capítulo, lindamente poéticas:

“Os veleiros balançam-se molemente sobre a água negra do porto. Os mastros se retorcem, árvores ainda cheias de reminiscências das florestas tropicais, mais do que verdadeiros mastros. Chega-se a ficar surpreendido de não ver brotar folhas daqueles mastros. Deitados na ponte, alguns marinheiros, de olhos abertos, se embebem, se alimentam do azul que os rodeia, transportam todo o azul do céu para os seus corações nostálgicos. Seus barcos têm nomes de mulheres ou de santos, e os nomes são os mesmos, pois não sabem mais se amam os santos com um amor carnal ou se sentem um amor espiritual por suas mulheres” (p. 13).

Para concluir, deixo aos leitores um trecho em que Bastide estabelece um paralelo entre os candomblés e as igrejas, palavras que constituem, também, um convite à aventura de se deixar envolver pelo misticismo nordestino:

“Quando se visita igrejas e candomblés, mesmo contra a vontade, uma analogia se impõe ao nosso espírito entre as duas metodologias do êxtase. Lá em baixo, no vale de um verde intenso, entre palmeiras, bananeiras, matagais espessos que têm o nome de santos ou de “orixá”, espadas de Ogum ou pau santo, tapete de Oxalá ou chagas de São Sebastião, o tã-tã dos negros penetra pelos ouvidos, pelo nariz e pela boca, bate no estômago, impõe seu ritmo ao corpo e ao espírito. Aqui é o tã-tã do ouro e dos adornos que nos penetra, não mais pelos ouvidos mas pela vista, mas que, no entanto, também não nos abandona, como acontece com o outro, o dos santuários fetichistas. É debalde que fechamos os olhos procurando escapar a eles: como quando se olha para o sol durante muito tempo, manchas luminosas, placas vermelhas e amarelas giram em nosso cérebro. Reabrimos as pálpebras e não sabemos onde descansar o espírito. A luz que brinca sobre as colunas baixas, que se aninha numa vinha negra, numa folha verde, num pássaro hierático, num sorriso de anjo, nos conduz a outro ponto brilhante, até que todos se põem a dançar e a girar, até que por fim nossa própria cabeça gira. Libertamo-nos de tudo quanto há de profano em nós; impossível tentar ligar duas idéias, coordenar um pensamento: estamos à disposição da mais terrível das aventuras” (p. 27).

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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