Sem mais, foi o jesuíta Auguste Valensin ao enunciar o essencial quando admite que, embora impossível, se se lhe mostrasse, no leito de morte, com a mais perfeita evidência, que ele errou, que não existe sobrevivência, que não existe sequer Deus, não se arrependeria de ter crido; mas se sentiria honrado porque creu em tudo isso, porque mesmo que o universo seja algo imbecil e digno de desprezo, pior para o universo, porque não errou quem pensou que existe Deus, mas o erro seria de Deus se Ele não existisse; algo semelhante não consigo encontrar fora ou acima do credo que Dostoiévski tinha formulado para si e que apresenta de  modo muito simples: creio que não existe nada mais belo, mais profundo, mais excitante, mais razoável, mais viril e mais perfeito do que Cristo, mas muito mais do que isso, se alguém me provasse que Cristo está fora da verdade e que de fato a verdade está fora de Cristo, melhor seria então ficar com Cristo do que com a verdade.

Isso é tudo o que tenho à mão, algumas citações (de homens sensatos) e um sentimento – tão delicado, assistemático e frágil. E, no entanto, esse capital vago, pequeno e humilde – com o passar dos anos de prisão é meu único proveito, um embrulho pequeno – basta-me para dar-me uma segurança sólida e para transmitir-me o convencimento indestemido de que sei o que devo e o que não devo fazer.

A incerteza é a lei fundamental da civilização ocidental – e é seu signo zodíaco; é também a condição de base do cristianismo. Mas dela se aproxima – “não provada” pelo plano humano, científico – aqueles convencimentos que são mais duros do que os teoremas, como rochas. (Temo-las das autoridades maiores). Impulsionado por eles, saberei sempre o que fazer, por meio deles posso restabelecer a qualquer tempo a ligação rompida com Deus, e a alegria; por cima do abismo, o posto emissor e o posto receptor podem entrar instantaneamente em comunicação.

Nicolae Steinhardt

[Steinhardt. N. O Diário da Felicidade. Tradução e revisão de Elpídio Mário Dantas Fonseca; revisão do texto romeno de Cristina Nicoleta M?nescu. São Paulo: É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda., 2009, p. 146].

Nos últimos dias cotejei diversos livros em busca de uma citação que se adequasse bem ao texto que eu tencionava postar hoje. Reli trechos – vários – de Santo Agostinho, uma das minhas fontes cristãs prediletas, de Ralph Waldo Emerson, dos escritos e biografias de São Francisco de Assis, de algumas biografias de Jesus Cristo, do Dicionário de Homilética, das epístolas paulinas e do Dicionário de Paulo e suas cartas, do livro de Albert Schweitzer “O misticismo de Paulo, o apóstolo” e, por fim, do livro do monge romeno Nicolae Steinhardt “O Diário da Felicidade”.

Pois bem, foi exatamente neste último autor que encontrei o texto perfeito, eu diria até mais que perfeito, por se adequar tão bem aos meus propósitos. Antecipei ligeiramente o assunto há três dias, quando postei , sem comentários, um trecho do Novo Testamento que narra o episódio em que Cristo encontra Levi, um coletor de impostos, e o convida a que o siga. É um dos textos bíblicos de minha maior predileção, e não são poucas as vezes em que a ele tenho retornado, lendo-o e meditando sobre sua mensagem sempre com renovado interesse.  

Esse episódio me leva sempre a refletir sobre alguns temas que para mim contam-se entre os mais palpitantes mistérios cristãos. Esses mistérios falam, especificamente,  de chamado, predestinação, livre-arbítrio e . Quando penso neles, sinto-me levado a um confronto com a controvertida e enigmática questão do chamado e da escolha. Na perspectiva cristã não basta ser chamado, pois é preciso também, para que este se efetive, ser um dos escolhidos. Mas, quem pode de fato e com certeza se afirmar um escolhido?

A indagação permanece insolúvel, não restando outra alternativa àqueles que se sentem chamados a não ser responder com um sim ou um não. No primeiro caso, o sim pressupõe uma aposta, a aposta na fé. A lógica cristã é uma lógica da aposta, isso há muito tempo Pascal o afirmou com o axioma que passou para a história com a denominação de “a aposta de Pascal”. Não esqueçamos, porém, que esta, como toda aposta, supõe o risco de ganhar ou perder, não se tendo de antemão nenhuma garantia sobre em que fileira, ao final, seremos incluídos, se na dos ganhadores ou dos perdedores.

Isso posto, resta-me dizer que, de minha parte, resolvi apostar.  O pouco que tenho que me motivou a fazer a aposta foi aquilo que Steinhardt fala no trecho citado de seu Diário: um punhado de citações de personagens que fizeram sua aposta e nos quais confio e me inspiro, um pouco de intuição, uma fé inquebrantável nas promessas de Cristo conforme expostas na Bíblia e a convicção de que, em que pese todos os equívocos do cristianismo e suas igrejas, dois mil anos de história não podem estar alicerçados num equívoco absoluto. Deve, portanto, restar algo de verdade no ethos cristão, e é nesse algo, para mim ainda não totalmente claro, que me fio para fazer minha aposta.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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