Feito à imagem e semelhança de Deus, o corpo humano é postulado desde o princípio do texto bíblico como um território do sagrado (Gn 1,26). Não se trata apenas de um monte de órgãos, vísceras, fluidos e funções. Na língua hebraica, todas as partes do corpo humano são hipostasiadas e dotadas de atributos psíquicos e espirituais. Cada parte do corpo humano leva em si mesma uma consciência do verdadeiro Eu e de sua unidade. É a hypostasis grega, a Pessoa, única e irrepetível, ícone divino, criado ao som do Verbo e na ressonância de seu Nome. Como na visão cristã do invisível trinitário, somos um Falante, que fala uma Palavra, dualidade que procede de um Sopro. A consciência corporal é hipóstase quando e sempre o existente coloca-se em relação com seu existir.

(…) O corpo humano possui uma estrutura e uma unidade que vão além da própria matéria, realidade essencial da pessoa. É um santuário onde a sabedoria divina se torna visível. A sabedoria judeu-cristã ajuda a viver o corpo como um templo, em que pesem todos os equívocos castradores e abomináveis que a história ocidental e oriental proferiu (e ainda profere) sobre o corpo.

Evaristo Eduardo de Miranda

[Miranda, Evaristo Eduardo de. Corpo, território do sagrado. São Paulo: Loyola, 2000, p. 11.]

As relações entre o corpo e o espirito sempre foram para mim, desde que me entendo por gente, um enigma, isso porque os embates entre um e outro atravessam minha história de vida. Sei, porém, que não estou sozinho nessa peleja. Na verdade, creio que não incorro em equívoco se afirmar que essa é, na verdade, a grande questão ainda não resolvida da filosofia ocidental.

Mas é no âmbito religioso que ela ganha, de fato, amplidão. Quem se dedicar por algum tempo ao estudo da história das religiões logo concluirá que, embora o domínio do religioso seja especificamente o espírito, nem por isso o corpo ocupa um lugar de menor destaque nas reflexões.  Isso sempre me causou uma especial curiosidade. Por que o corpo ocupa um lugar tão proeminente nas religiões?

Ora, o que ocorre é que é no corpo que nós acontecemos. Se o sagrado de fato tem que em algum momento se manifestar, é no corpo que ele o fará. Nesse sentido pode-se afirmar que o corpo é o locus do sagrado.  Partindo-se desse pressuposto, uma questão é inevitável:  existem requisitos necessários para que um corpo esteja apto a ser o locus de uma hierofania, ou seja, para que nele o sagrado se manifeste?  Não tenho uma resposta conclusiva e única para a questão. Mesmo assim, me permito sugerir aqui duas possibilidades.

A primeira é que, segundo me parece,  por dom gratuito, ou por qualquer outro motivo que não consigo explicar, o sujeito pode experimentar uma hierofania independente de ter ou não treinado seu corpo para isso. A história das religiões está cheia de exemplos de revelações súbitas que transformam, simultaneamente, corpo e espírito, sem que o sujeito que foi objeto do evento hierofânico o tivesse deliberadamente procurado.

A segunda  é que, como tem revelado a história dos místicos e iogues ao longo dos tempos – para não falar de outras tantas categorias de religiosos pertencentes a outras religiões, como os dervixes no islamismo -, creio que seja possível, sim, trabalhar o corpo de tal forma que ele se torne mais receptivo aos influxos do sagrado, proporcionando-lhe, assim, maiores possibilidades de que o sujeito que se dedicou por longo tempo ao controle do corpo  experimente uma hierofania.

Em que pese, entretanto, o que acima afirmei, não se pode olvidar o paradigmático caso da iluminação de Sidarta Gautama, o Buda. Depois de longos anos de árduo ascetismo em que o corpo ficou quase reduzido a pele e ossos, Sidarta concluiu que aquele não era exatamente o caminho da iluminação. Mudou de perspectiva e, somente então, obteve a revelação, o que o levou a postular que a verdade, ao contrário do que ele supunha, não está nos extremos, mas no caminho intermediário

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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