Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está – (o teu templo) – eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
[…]
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.
Fernando Pessoa
[Pessoa, Fernando. O eu profundo. [Prece]. Em: Pessoa, Fernando. Obras em prosa em um volume. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A.,1990, p. 33.]
Tendo lido, ainda nos anos oitenta, a obra poética de Fernando Pessoa, comecei agora a ler sua obra em prosa. De fato, eu já havia lido parte dela, os dois volumes do “Livro do Desassossego”. Agora, iniciei a leitura de “O Eu Profundo”. Já no segundo texto do livro, me deparei com uma prece que me fez imediatamente lembrar santa Teresa d`Ávila. No primeiro parágrafo do capítulo 23 do “Livro da Vida”, a autora afirma: “Louvado seja o Senhor, que me livrou de mim mesma” (Santa Teresa d´Ávila. Livro da Vida, cap. 23, p. 149. Em: Teresa de Jesus. Obras Completas. Texto estabelecido por Fr. Tomas Alvarez, O.C.D. Direção Pe. Gabriel C. Galache, SJ. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e outros. – São Paulo: Edições Carmelitanas: Edições Loyola, 1995).
Na ocasião em que li a frase pela primeira vez, causou-me ela tal impacto que, não contente em apenas destacá-la no texto, anotei-a na agenda. Desde então, frequentemente tenho retornado à sua leitura e reflexão.
Agora, ao iniciar a leitura de “O Eu Profundo”, deparo-me com a Prece de Fernando Pessoa que ele conclui com a frase: “Senhor, livra-me de mim”. A semelhança entre ambas as frases está no tema. Uma diferença, porém, pode ser apontada: no caso do poeta, ele pede a Deus que o livre de si mesmo; em se tratando da santa, porém, ela louva a Deus por tê-la livrado de si mesma.
Um e outra deixam antever, parece-me, uma espécie de angústia existencial motivada por aquilo que eles próprios são e de que não conseguem se livrar ou se evadir. Algo que diz respeito, talvez, à sua essência. Arriscaria dizer que esse incômodo ancora-se na própria condição humana. Viver é incômodo demais. Para pessoas que atingem um nível de consciência profundo da natureza humana, suportar a si mesmas pode se tornar um fardo muito pesado.
Os poetas e os místicos – dentre os quais se incluem as duas figuras abordadas neste texto -, não hesito em afirmá-lo, atingem esse alto nível de consciência. Curiosamente, em se tratando de Fernando Pessoa e santa Teresa d`Ávila, ambos, em perspectivas diferentes, traziam em si, simultaneamente, as duas condições: de poeta e de místico. Aquele procurou a saída na arte; esta, na religião. As duas alternativas, creio, revelam-se igualmente sofridas e difíceis. Quem duvidar, que mergulhe na leitura do “Livro do Desassossego” e do “Livro da Vida”. Cabe dizer, ainda, que ambas são igualmente plausíveis.
Uma pergunta, porém, fica ainda por ser respondida, e disso deixarei para tratar em outra ocasião: a que porto leva uma e outra aventura, o itinerário artístico e o itinerário religioso? Em que os dois se assemelham e em que diferem? Um paralelo entre o “Livro do Desassossego” e o “Livro da Vida” talvez possam fornecer algumas pistas para essas questões.
Prezado Vasco:
Primeiramente te parabenizo pelo espaço e pelas postagens, sempre esclarecedoras. Estou escrevendo, pois fiquei interessadíssimo em ler o livro “O Cristo” de Rabindranath Tagore, após ler o teu post “Tagore: o poeta universal”. Sei que esse título saiu pelas Edições Paulinas, entretanto, não o encontro no site da editora, muito menos na Estante Virtual. Você sabe onde posso encontrar esse exemplar? Gostaria muito, muito mesmo de por ler esse material… Agradeço se tiver condições de me responder. Um grande abraço, Rodrigo Prado.
Caro Rodrigo,
Grato por visitar meu blog e pelos elogios. Bem, já que você não conseguiu encontrar o livro nem mesmo na estante virtual, posso lhe sugerir o seguinte. Mande-me seu endereço que terei imenso prazer em mandar fazer uma cópia do livro e remetê-lo a você pelos Correios, está bem?
Grande abraço,
Vasco Arruda
A plena consciência de nossa vulnerabilidade nos faz sofrer de tal forma que só uma extrema força externa seria capaz de nos fazer suportar a dor da existência.