Ó Senhor, tende em conta o muito que sofremos neste caminho por falta de instrução! E o mal é que, como não pensamos ser preciso mais do que pensar em Vós, nem sabemos perguntar aos que têm instrução, nem consideramos que haja necessidade de perguntar. Experimentamos terríveis sofrimentos por não nos entendermos. E chegamos a pensar que é grande culpa o que, longe de ser mau, é bom. Daqui provêm as aflições de muitas pessoas voltadas para a oração, ao menos das que são pouco esclarecidas. Elas se queixam de sofrimentos interiores, tornam-se melancólicas, perdem a saúde e até abandonam a oração por completo, desconhecendo que há um mundo interior em nós.

Santa Teresa D’Ávila

[Castelo Interior, Quartas Moradas, Cap. 1, 9, p. 474. Em: Teresa de Jesus. Obras Completas. Texto estabelecido por Fr. Tomas Alvarez, O.C.D. Direção Pe. Gabriel C. Galache, SJ. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e outros. – São Paulo: Edições Carmelitanas: Edições Loyola,1995].

Muitas vezes tenho me perguntado quais são os limites e possibilidades da intervenção por via espiritual. Noutras palavras: será que é viável estabelecer contato com um Mestre por via espiritual, por exemplo, por meio da oração e/ou da meditação, e sentir, de fato, os efeitos deste contato? Quando me refiro aos efeitos estou querendo saber se tal contato é capaz de provocar, efetivamente, mudanças no pretenso discípulo.

Para quem é católico, como é o meu caso, e, portanto, acredita na comunhão dos santos, está bem assentado que essa pergunta tem uma resposta afirmativa. Saliente-se, entretanto, que essa crença não é exclusiva do catolicismo, pois a encontramos em diversas religiões; arriscaria até a afirmar que ela é um elemento comum a todas as religiões. A intervenção sobrenatural no mundo humano é premissa basilar de qualquer crença religiosa.

Mas quero ir um pouco além na exploração da questão. No hinduísmo e no budismo encontramos a prática comum de entregar-se aos cuidados de um Mestre. Nesse caso, aquele que se entrega a tais cuidados assume explicitamente a condição de discípulo que busca a iniciação nas práticas que têm, como último estágio, o nirvana. Essa instituição, comum a essas duas religiões, pressupõe, portanto, uma relação intensa entre o Guru e o seu discípulo. O Guru, nesse caso, pode ser tanto um Mestre que ainda vive quanto um que já desencarnou.

Em se tratando dessa experiência no âmbito da Igreja Católica, temos um Mestre para o qual todos devemos tender, Jesus Cristo. Mas temos, também, aqueles outros a quem também podemos, de certa forma, tomar como mestres que podem nos conduzir à experiência máxima de união com Cristo. Refiro-me aos santos.

Por que assumo essa perspectiva em relação aos santos? Pelo simples fato de que eles próprios fizeram sua experiência e lograram sucesso em seu intento. Assim sendo, eles têm os requisitos necessários para conduzir um devoto, aqui alçado à condição de discípulo, à mesma experiência. É evidente que qualquer um pode decidir buscar diretamente a Cristo, sem intermediários. Alguns leitores poderão alegar que, para isso, temos os textos do Evangelho que estabelecem o itinerário seguro para quem quer seguir o Caminho. Não nego que isso seja verdade. Mas nem sempre o itinerário é tão claro quanto gostaríamos. Nesse caso, a orientação de quem já fez o Caminho se torna garantia de que se chegará ao termo da jornada.

A propósito dessa questão, tenho dialogado com dois mestres que, dentre os muitos possíveis, tomei como meus guias, ainda que a revelia deles, pois não sei até que ponto posso garantir que eles condescenderam em instruir um discípulo tão relapso, contraditório e inconstante quanto este que ora escreve estas linhas. Mesmo assim, resolvi arriscar. Por coincidência, são dois avilenses, embora uma deva o qualificativo à cidade em que nasceu e, o outro, não.

Refiro-me a Santa Teresa D’Ávila e São João de Ávila. Curiosamente, a primeira, em determinado momento de seu itinerário espiritual, recorreu ao segundo, buscando aconselhamento. Santa Teresa D’Ávila não chegou a ser discípula de São João de Ávila, mas ambos trocaram correspondências quando ela foi aconselhada a buscar a opinião deste a propósito de um de seus escritos. Pois bem, tenho dialogado com os dois, mas desse diálogo tratarei no próximo texto.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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