No último 21 de maio, Hermeto Pascoal esteve em Boston para receber o título de doutor honoris causa no New England Conservatory. “O senhor fez contribuições exemplares para o campo da música e gostaríamos de anunciar e reconhecer o papel importante que você desempenhou”, escreveu a tradicional e uma das mais respeitadas escolas de música do mundo. O brasileiro, que já foi chamado de mestre e bruxo, ainda se espanta de ser chamado de doutor, embora ainda não saiba dizer direito o complemento do título.

O alagoano de 81 anos recém completados também não fala inglês, mas não nega o orgulho pelo reconhecimento a quem aprendeu a linguagem da música antes de dominar a be-a-bá. Incansável compositor e músico, Hermeto está com dois projetos na agulha para apresentar este ano. Um deles é um disco gravado ao lado de uma big band formada por 20 músicos brasileiros e patrocinado pela Natura Musical. Explorando mais os arranjos e a composição, a formação que acompanha o músico é algo inédito em sua trajetória. “Há 10 anos não tinha ninguém pra gravar isso, com essa qualidade dos músicos. Como Deus me deu mais anos de vida, deu pra eu ver músicos jovens tocando bem”, comemora por telefone.

O outro projeto – que chega disponível nas plataformas de streaming e lançado em agosto no formato físico – é No Mundo Dos Sons, álbum duplo que divide com a turma de músicos que ele batizou simplesmente de “O Grupo”. Há 15 anos sem gravar com o Grupo, Hermeto viaja no meio de um liquidificador de sons, melodias, ideias, criações que podem soar simples ou difíceis para o ouvinte. “A música do Hermeto é difícil? Difícil é tocar num bar, todo dia a mesma coisa. O que eu quero é a música que não tem preconceito”, questiona e responde o próprio Hermeto.

Som da Aura, por exemplo, é um improviso musical sobre as falas dos músicos, reproduzindo a melodia natural da voz de cada um. Viva São Paulo! remete a Arrigo Barnabé e à Vanguarda Paulistana, enquanto Vinicius Dorin em Búzios vai da marcha carnavalesca ao sambajazz (e volta) com uma fluência deliciosa. Entrando pelos Canos é uma ode à percussão que bota o Grupo pra bater tamancos, canos de alumínio, colheres e outros objetos por sete minutos. Já Para Miles Davis é uma espécie de free jazz que harmoniza 17 sons, entre sax, pandeiro, apitos, bacias, gansos e galinhas. “Quando comecei a colocar as caçarolas (na música), eu era muito criticado pelos músicos. Diziam que eu estava ficando doido. Hoje em dia, eles ficam caladinhos porque viram que eu não toco pro brincadeira. Eu toco sério”, avisa Hermeto.

E é com essa seriedade bem humorada que doutor Hermeto aproveita No Mundo Dos Sons para homenagear pessoas e lugares importantes para sua vida. Miles Davis, que um dia falou que, se voltasse do mundo dos mortos, queria renascer como “aquele albino maluco do Hermeto”, agora tem uma música para si. Tem ainda Edu Lobo (que ele acompanhou, como integrante do Quarteto Novo, na apresentação de Ponteio no III Festival de MPB), o flautista Carlos Malta (ex-integrante do Grupo), o pianista norte-americano Chick Correa (que Hermeto chama de “Chiquinho Correia”) e o baixista Ron Carter (parceiro em muitas gravações no exterior) e o bisneto Rafael, neto de Fábio, que também toca no disco.

“Você sabe que a música não envelhece. Tem músicas (no disco) que fiz há muito tempo, mas é tudo tão atual. Já toquei esses arranjos, só não tinha gravado ainda”, confessa o músico que, há 40 anos, gravou o álbum Orós, com Fagner, e mantém a mesma veia criativa apresentada na parceria com o cearense. “Esse foi um trabalho muito lindo por que o Fagner me deixou à vontade. Eu tive total liberdade e não faria se não tivesse. Quero criar e não quero ninguém dizendo o que tenho que criar. O resultado é que ele ganhou prêmio de melhor disco e eu de melhor arranjador’, comemora.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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