Na literatura e no cinema, o detetive belga Hercule Poirot, criado pela inglesa Agatha Christie, sempre se notabilizou pela excentricidade. Com isso, a leveza sempre foi regra nas obras, mesmo quando a história impunha certa carga dramática. Já adaptado por Sidney Lumet em 1974, “Assassinato no Expresso do Oriente” (1934) e uma das obras mais carregadas da “Rainha do Crime”, ainda que sempre apresentado sob uma luz positiva. Isso até a chegada de Kenneth Branagh.

Hercule Poirot (Kenneth Branagh) protagoniza o filme. O ator também dirige a obra

Conhecido pelas belas adaptações shakespeareanas de “Muito Barulho por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996), o ator, diretor e produtor norte-irlandês tem uma assinatura demarcada pela elegância e pela exposição precisa de conflitos internos. As duas características se sobressaem mais uma vez nesta adaptação de “Assassinato no Expresso do Oriente”, um filme mais focado nos dilemas morais do detetive Hercule Poirot (o próprio Branagh) do que em esmiuçar o mistério que dá nome à trama.

O bigode excêntrico, o linguajar próprio e até o visual tanto quanto rotundo se mantêm no personagem. Mas, dessa vez, ele surge mais cheio de si do que na versão interpretada por Albert Finney em 1974. Há ainda certo ar de galhofa. Mas a trilha sonora e mesmo as fotografia mais fria indicam novos encaminhamentos. Branagh se preocupa, inclusive, em adicionar pequenas cenas de ação – nada exagerado, no estilo dos “Sherlock Holmes” de Guy Ritchie, mas ainda assim uma novidade no tocante a Poirot.

O grande elenco de “Assassinato no Expresso do Oriente”

A trama central segue quase intocada. Em meio a uma viagem de trem, Poirot precisa desvendar o misterioso assassinato de um vigarista. São 12 sobreviventes no vagão e todos eles parecem ter mais ou menos motivos para se livrar do criminoso. O foco em Poirot, como no início de uma nova franquia, deixa pouca perna para o desenvolvimento dos 12 personagens. Por exemplo, conseguimos acompanhar os dilemas da governanta Debenham (Daisy Ridley), mas quase esquecemos da presença do empresário Marquez (Manuel Garcia-Rulfo). A própria cena final, “a última ceia” dos passageiros, perde força mesmo apresentando novidades, já que criamos poucos laços com os personagens.

Um aspecto interessante que se revela em “Assassinato no Expresso do Oriente” – tanto o romance, quanto as duas adaptações -, é a subtrama , desenrolada adjacentemente à investigação do crime. E aqui talvez tenhamos spoilers. O rapto e morte da bebê Armstrong, protagonizados pelo mafioso Cassetti, surge de forma frágil, pouco entrelaçada com a trama principal diante da importância do que é dito. De certa forma, isso diminui as chances do público conseguir “matar” a charada sozinho, o que parece dar poderes sobrenaturais de clarividência para Poirot. Em um filme tão preocupado em humanizar, transformar o detetive em personagem mais palpável, essa aura divina só afasta.

Apesar do pouco tempo de tela, Daisy Ridley se destaca

Com poucas novidades e uma boa revisita, “Assassinato no Expresso do Oriente” não é um avanço em relação à adaptação de Sidney Lumet. Mas é um filme eficiente e mais organizado que a maioria das tramas de mistério atuais. Branagh consegue compor um personagem rico e usa bem os talentos de um elenco que conta com Penélope Cruz, Josh Gad, Johnny Depp, Michelle Pfeiffer, Judi Dench e Willem Dafoe. É, sobretudo, uma nova introdução a um personagem importante da literatura mundial. Ao mesmo tempo, e por definição, é uma obra descartável. Mas, dependendo do rigor de quem critica, o “Assassinato no Expresso do Oriente” de 1974 também o era. O que não faz de Poirot menos bem-vindo. E é, novamente, uma chance de apresentar Agatha Christie para novos públicos.

andrebloc@opovo.com.br

Cotação: nota 5/8.

O filme entra em cartaz na próxima quinta-feira, dia 30 de novembro.

Ficha técnica
Assassinato no Expresso do Oriente
(Murder on the Orient Express, EUA/Malta, 2017), de Kenneth Branagh. Crime/Drama. 114 minutos. 12 anos. Com Kenneth Branagh, Daisy Ridley, Johnny Depp e Judi Dench.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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