Brasil,  ano de 2027, o auge da tecnologia aliada a burocracia que permeia os órgãos públicos e busca mapear e programar todos os cidadãos em tudo, até seu código genético. Em uma democracia teoricamente dita laica, uma religião teocrática conservadora predomina sobre os que fazem parte da estrutura do poder público e àqueles que ali se encontram envolvidos naquela sociedade: O Divino Amor. 

Em um cartório onde as pessoas precisam prestar cadastro para o governo, trabalha Joana (Dira Paes), uma secretária responsável por providenciar e catalogar documentos de divórcio. Devota fervorosa do Divino Amor, ela tenta persuadir os casais para que desistam da separação e deem uma segunda chance à união. Vê assim uma maneira de fazer o bem à sociedade sempre pensando na felicidade alheia como uma espécie de barganha como uma forma de “boa ação”, buscando ser recompensada em seu propósito maior que é gerar um filho com o marido, Danilo (Julio Machado).

Acompanhamos essa imersão total de Joana na religião, fazendo uso desde elementos religiosos, músicas, orações e reuniões frequentadas junto com seu marido em um rito de casais e, como ela narra, a festa do “Amor Supremo”, um grande ritual onde extravasam seu amor a Deus por meio das batidas de músicas de louvor eletrônico. 

É interessante notar como Joana só se sente segura estando amparada por instituições, sejam elas a da religião e o processo de estrutura burocrática do governo, como ela ressalta quando a vemos trabalhar. Essa necessidade de apoio institucional em sociedade configura uma vício muito comum no nosso cotidiano. 

Outro aspecto perturbador do longa é tanto a presença das facilidades – e dependências – da tecnologia carregadas de simbolismo cínico do capitalismo ao copiar modelos, como o de um Drive Thru, e atrelá-lo a um significado religioso, e se dar conta de que tal modelo não está longe da realidade. 

 

 

Com elementos bem presentes em sociedades distópicas e toques da ficção de George Orwel, “1984” em que os membros dessa sociedade são constantemente vigiados e passam a ser privados de conceitos de individualidade e privacidade, o que o Amor Divino prega é uma doação completa do indivíduo literalmente de corpo e alma entregue à Sua vontade, e no caso das mulheres, serem “instrumentos” de geração de novos indivíduos porque assim são designadas para tal propósito. 

O sexo é outro elemento central da trama, tendo sua existência justificada apenas para a reprodução e a perpetuação da espécie. Temos indivíduos praticando o sexo, porém, sem manifestar a própria sexualidade, anulada, apenas restrita ao ato sexual, animalizado em algumas cenas. Joana e Danilo são um casal, mas não existe nenhum elo além do ato sexual e o propósito de gerar um filho que os una verdadeiramente e demonstre, ironicamente, o sentimento de amor que um tem pelo outro.

O olha com que o diretor Gabriel Mascaro produz as analogias é sutil e inteligente, conduzindo-as por toda a trama. Desde o cachorro do casal que sai em disparada apenas para cruzar com a cadela na casa da vizinha, tem exatamente o mesmo impulso que move os personagens. A água utilizada para os rituais de imersão dos fiéis não tem um aspecto puro, assim como a visão conflitante do ambiente em que os rituais regados a sexo. Tudo é repleto de neon, obscuro, soturno, comuns em locais que sugerem o pecado em vez da redenção.  

O mais surpreendente – ou não tanto assim – é quando o tão almejado desejo de Joana se concretiza, mas não inteiramente da maneira como se espera, o sistema em que ela mesma confiou toda a sua vida a rechaça e seu casamento, tão fundamentado diante dos outros passa também a ruir. A fé torna-se algo relativo e não absoluto. 

“Divino Amor” é um audacioso e assustador retrato de como religiões fundamentadas na artificialidade e no conservadorismo podem transformar o ser humano em algo massivo, hipócrita, reprodutor de frases e conceitos decorados de um livro e incapazes de compreender ou de sentir aquilo que tanto pregam. Estaríamos preparados para um milagre se realmente presenciássemos um?

 

Cotação: 8/8

About the Author

Catherine Santos

27 anos, Jornalista, apaixonou-se pela magia do cinema aos 7 anos. Filmes são pedaços da vida dos outros que você colhe para montar a sua própria vida.

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