Evaldo Gouveia de Oliveira é íntimo dos brasileiros. Até quem nunca esteve com ele, certamente, já ouviu o que ele tem a dizer em canções como O trovador, Alguém me disse e Sentimental. Ao longo de uma carreira que começou na Ceará Rádio Clube e chegou à gigante Rádio Nacional, Evaldo (em fotos de Iana Soares) viu suas histórias de amor virarem grandes clássicos nas vozes imortais de Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Gal Costa e Zizi Possi.

A história começa bem antes, entre Orós e Iguatu. Desde pequeno Evaldo já era encantado pela música que vinha do rádio. Sua idade quando começou a cantar na radiadora é difícil precisar, uma vez que, pra vencer como compositor, ele teve que mentir a idade pra parecer mais velho. Até segunda ordem, hoje ele tem seus 80 anos, completados no último dia 8 de agosto. “Ninguém diz que eu tenho essa idade”, diz com voz firme. “Parei de fumar e beber. Por isso é que eu to bem”. Aliás, data não é com ele mesmo. Logo no início da longa conversa, numa tarde ensolarada de sexta-feira, Evaldo alerta: “Só não me pergunte data”. No entanto, parece que as lembranças ainda estão fresquinhas em sua memória.

Com a infância dividida entre a tranquilidade do interior, quando vivia sob os cuidados do avô delegado, e as dificuldades financeiras na capital, quando tinha que matar a fome com banana, farinha e água, Evaldo Gouveia sempre acalentou o desejo de ser artista. “Desde pequeno sonhava em estar cantando em Copacabana e um artista passar e dizer: ‘Menino tu tem uma voz muito bonita’. Que ele me contratasse e eu tirasse minha mãe do sufoco”. O sonho se realizou e hoje ele conta sua história sempre com um violão do lado e um sorriso no rosto.

O POVO – Você é nasceu em Iguatu. Que lembranças você tem da sua infância?
Evaldo Gouveia
– Na verdade, eu nasci em Orós. Meu avô era sargento de polícia e tinha o comando da polícia lá. Quando eu nasci, o pai do Fagner, seu Fares, era amigo do meu avô e disse: “Oh, Fares, venha ver meu neto que nasceu”. Eu com duas horas de nascido. Me levaram lá pra ele me ver. Como a família Belchior, que era o valentão, tava quebrando tudo lá no Iguatu, meu avô foi mandado pra lá. E eu fui pra Iguatu num caçuá de burro com oito meses de nascido. Por isso eu me considero… Me considero não: Eu sou iguatuense. Foi lá que eu vivi até os 12 anos de idade. Me lembro muito de um carneirinho que eu tinha, que eu amava, mas não lembro o nome. Quando eu tinha cinco anos de idade, tinha um rapaz chamado Assis de Amancio, que tocava violão, e eu era doido pra aprender a tocar por causa das meninas da rua. À noite, a gente juntava embaixo de um pé de benjamim e ficava tocando e brincando. Quando eu comecei a aprender os tons, cantando também, diziam que eu tava tocando direitinho. Aos oito anos, eu já cantava na radiadora na praça da estação.

OP – E o que você cantava?
EG – “Nosso amor que eu não esqueço/ E que teve o seu começo/ Numa festa de São João” (“Último desejo”, de Noel Rosa). Uma voz aguda pra lascar. Tinha um colegiozinho lá que eu ia na parte da manhã, mas meu negócio mesmo era a música e ficar com as meninas ali. Minha tia tocava bandolim. Então, eu fui envolvido. Todo mundo fazia um tonzinho pra mim.

OP – Você falou no seu avô, mas e os seus pais?
EG – Eu fui criado sem pai. Houve uma desavença de família, meu pai com a minha mãe. Quando eu tinha cinco anos, ele se mandou pra Amazônia, pra negócio de borracha, e não o vi mais. Tu acredita que, aos 17, 18 anos de idade eu ainda perguntava a quem vinha daqueles lados: “Você conheceu um cara chamado José Augusto? É meu pai”. Aí eu perguntei a um cara e ele disse: “É um que era boêmio?”. Disse: “Só era”. (Resposta) “Ah! Mataram em Belém na zona”. (Evaldo) “Rapaz, é mesmo?!”. Aí aquele desengano foi total na minha vida e nunca mais eu pensei nele. (anos depois Evaldo descobriu que o pai tava vivo e foi encontrá-lo).

OP – E como foi sua mudança pra Fortaleza? Foi difícil sair do interior para a cidade grande?
EG – Nós viemos pra capital e foi um tal de passar fome, rapaz. Minha mãe passava roupa pra soldado da polícia. Tu imagina, ganhar dinheiro de soldado, que já não ganhava nada. E eu fui vender inhame, macaxeira e batata doce no mercado central (onde hoje funciona o Centro de Referência do Professor). Foi quando um dia me disseram pra ir ao show de calouros. “Tem um prêmio de 150 mil réis. Tu vai lá e se inscreve”.

OP – E o que você gostava de ouvir nesta época? Tinha um artista preferido?
EG – Música pra mim era música. Toda qualidade de música boa. Eu ia pro pezinho do rádio e pegava a letra o tom. Eu já nasci artista. Eu ouvia Dircinha (Batista), Linda (Batista), do Nelson (Gonçalves). Mas, o preferido era o Sílvio Caldas. “Minha vida era um palco iluminado” (cantando “Chão de estrelas”, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa). Puta que pariu! Eu já acompanhava as serestas. Era um período difícil dentro da minha casa. Então, num sábado me levaram pra cantar num programa de calouros e eu cantei “Caminhemos”, do Herivelto Martins. “Não, eu não posso lembrar que te amei…”. meu filho, quando eu vi aqueles 150 pau dentro do meu bolso, foi a maior alegria da minha vida. Passei uma semana comendo galinha. E eu tinha a minha torcida. Então, eu disse: “Eu vou de novo”. Fui e foi mais 150.

OP – Você, então, começou a cantar profissionalmente com o Trio Nagô. Como foi esse começo?
EG –
Eu era muito encabulado, tanto que eu cantava olhando pros pés. Mas, fui contratado pela Ceará Rádio Clube pra fazer parte do casting. Um dia o Trio Irakitan cantou em Fortaleza e eu fiquei com aquele negócio na cabeça. Um dia cheguei para o Mário Alves e disse “vamos montar um trio?”. (Resposta) “Rapaz, você ta doido? Sou um homem de 40 anos e tenho seis filhos”. Mas ele gostava quando ele cantava e eu fazia uma segunda voz. Insisti dizendo que seria só pra cantar em casa de amigo. O Mário era considerado a voz do Ceará e “Príncipe da tesoura”, o melhor alfaiate de Fortaleza. Então eu chamei o Epaminondas (de Souza). Começamos a ensaiar “Ave Maria do Morro”, “Jezebel” e “Boiadeiro”. Fizemos os arranjos, começamos a cantar e espalhamos por aí o Trio

OP – Foi com eles que você trocou Fortaleza pelo sudeste, fazendo shows no Rio de Janeiro e São Paulo. Como foi esta chegada por lá?
EG –
Foi negócio pra matar todo mundo. Nós fomos com tudo. Nós ficamos 15 dias dentro no Hotel Excelsior, que era o melhor hotel de São Paulo, e pronto. À noite, a gente descia via aquele monte de bicha lá, que eu tinha era medo. Passei dois dias sem tomar banho porque não achei o chuveiro. Eu não conhecia chuveiro! Aqui eu tomava banho de cuia. A rádio tinha dado todo o esquema, mas nós é que não fomos alerta pra procurar. Foi quando o diretor da rádio foi lá, pediu desculpas e disse: “tem mais de 100 pessoas esperando pra conhecer vocês. Vocês entram amanhã”. Na nossa estreia, o auditório da Tupi estava de pé. O diretor, de cara, perguntou se a gente podia ficar um mês e deu um tanto de dinheiro pra fazer cinco programas. Topam? Ora, com o dinheiro e nós todos duros.

OP – E sua ida para o Rio de Janeiro…
EG –
Tinha que cantar no César de Alencar, se não, não valia nada. Nós combinamos de ir, pegar um táxi no aeroporto e procurar um hotelzinho barato. Hoje eu passo lá e vejo, Hotel Araújo, um rendez vous perto da central do Brasil que é o maior reduto de malandro do mundo. Ninguém dormia com a zoada à noite. Também, eu fui pedir uma coisa baratinha! Depois, chegamos na Rádio Nacional e eu já me espantei com o elevador. Nos apresentamos dizendo que éramos do Ceará. A secretária disse que não tinha espaço, só pra dali a um mês. Fiquei com lágrimas nos olhos. Quando fomos embora, que chegamos na porta do elevador, o Mário encontrou um amigo, produtor aqui do Ceará, que era o primeiro redator da Rádio Nacional, e foi aquele abraço. O Mário contou o que tinha acontecido e ele “conversa fiada, vem cá”. Nos levou direto para sala do César. Ele marcou da gente cantar no Teatro João Caetano. Chegamos meio dia e ficamos vendo lá os artistas. Quando chegou a nossa vez, o Cesar disse “vou chamar agora três campos de aviação”, cabeça chata, né? E eu pensei, “deixa só a gente começar a cantar”. Ele ficou doidim, a plateia aplaudia de pé. Ele até convidou pra ir cantar na boate dele em Copacabana, disse que ia ter cachê e nunca pagou. No segundo mês, a Rádio Nacional contratou o Trio Nagô.

OP – Aos 29 anos, veio sua primeira composição, “Deixe que ela se vá”, feita com Gilberto Ferraz e gravada pelo Nelson Gonçalves. Como nasceu essa composição? Como ela chegou ao Nelson Gonçalves?
EG –
Eu tinha namorada chamada Eloína, o corpo mais bonito do teatro, um amigo perguntou por ela e eu respondi, “ah, deixe que ela se vá. Não quero nem saber”. E eu fiz uma melodia “deixe que ela se vá, não lhe diga que não, que não” (cantando). Nessa brincadeira, quando chegava a turma eu cantava. E num é que eu terminei a canção! E eles diziam que tava bonito. O Lúcio Alves disse que tava bonito. Um dia, no bar da Rádio Nacional, o Mário Lago me chamou e disse pra eu mostrar minha música para o Nelson Gonçalves, que tava lá. E ele disse, “leva na RCA Victor (gravadora) que eu gravo”. Passou seis meses, e ele sem me dizer nada. Um dia eu tava num bar, no banheiro, e o pessoal me chamando por que tava tocando minha música. Não deu um mês, saiu a letra no jornal. Comprei vinte jornais e mandei pro Ceará, pros amigos todos. O Gilberto era um companheiro meu que só botou duas palavras na letra, mas eu disse “fica aí na parceria”.

OP – Em seguida, veio “Eu e deus”, composta com Pedro Caetano e gravada por Nora Ney. Essa teve história?
EG – Foi mesmo! A Nora Ney passou mim e disse “menino” – nessa época meu nome era “menino do Trio Nagô” – “tu que é o Evaldo? Aquela música é tua? Menino, que coisa bonita. Tu não tem outra não?”. Eu respondi, “e mais bonita”. Mas eu não tinha nada. Fui pra casa, encontrei o Pedro Caetano, disse o que tava acontecendo e ele “tu quer fazer agora?”. Vambora. E ela gravou.

OP – O que acha dessas suas primeiras composições comparando com as novas?
EG –
Eu melhorei harmonicamente.

OP – Mas você já gosta dessas primeiras?
EG – É perfeição! Eu já vim derrubando os outros. Recebi até ameaça quando ganhei meu primeiro samba na Portela. Disseram pra minha mãe, “diga a seu filho que tome cuidado se não ele morre na primeira esquina de Madureira”. Aí, eu ganhei o segundo samba e me mandei pra São Paulo.

OP – Em 1958, você conheceu o Jair Amorim (1915 – 1993) que se tornou um dos seus principais parceiros. Como vocês se conheceram?
EG – Um dia disseram que eu tava ganhando muito dinheiro com a música que o Nelson gravou. E eu perguntei como. “Ora, com direitos autorais”. E eu lá sabia o que era direitos autorais! “Rapaz, vai lá na UBC (União Brasileira de Compositores), procura o Jair Amorim, que é o secretário, e se associa lá. Onde tocar tua música tu ta ganhando”. Minha vida era ganhar com o Trio e a vendagem dos discos. Quando ele falou em Jair Amorim, meu coração bateu. Quando cheguei lá, que me apresentei, disseram que ele (Jair) queria muito falar comigo. Estranhei porque nunca tinha dito que iria lá. Na certa ele já me conhecia e tava querendo um parceiro. E, assim, nasceu a dupla.

OP – Fora da parceria, vocês também eram amigos próximos?
EG – O Jair só fazia música comigo. Jair sem Evaldo Gouveia não fazia nada. Eu fazia música, dava toda a ideia, ele ia pra janela e fazia letra. Ele até podia fazer música, mas não era o forte dele. Eu chegava de madrugada em Copacabana, ia pro bar onde o Tom (Jobim) tocava e ficava com o Tom, Vinícius e a corriola toda. Eu era da mesma laia deles. Mas o Jair era outro tipo de gente. A mulher do Jair era muito… toda… (ele prefere não falar). Ele é 20 anos mais velho que eu. Nós éramos amigos. A mulher até tinha ciúmes por que dizia que era eu quem levava ele, mas era o contrário.

OP – Mas, com a parceria, vocês estavam sempre próximos.
EG – Não, por que a mulher dele… tá louco… No dia que ele falou que queria me conhecer, ele me disse “Evaldo, eu to viúvo”. Eu pensava que ele tinha perdido a mulher, mas era viúvo de parceria. Eu encontrei o Jair na UBC e fui pro Bar do Gouveia. Chegava lá, era um litro de whisky e tal. Eu nunca tinha colocado whisky na boca, então misturava com guaraná pra dar certo. Fomos pra lá, sentamos e o garçom veio servir. Tinha que botar na medida, não podia derramar, por que o Jair não gostava de choro. Eu botei o gole na boca, foi em cima dele. Eu vomitei. Eu lá sabia que aquele negócio era ruim daquele jeito. “Seu Jair, o senhor me desculpe”. Deixei lá, e tomei um guaraná. O tempo passou e eu dizia pra ele “o culpado é você”. Eu fui o maior bebedor de whisky do Brasil. Parei de beber quando vi todo mundo morrendo, até o Jair.

OP – A primeira música que vocês fizeram juntos foi “Conversa”…
EG –
(Lembrando) Foi! Foi essa mesmo, que eu gravei com a Hebe Camargo, que na época namorava o João Calmon (ex-diretor da Ceará Rádio Clube). Naquela época, mocinha, ela vinha aqui pro Ceará. Depois a Alaíde Costa regravou. Aí, acabou tempo ruim. Deixei de ser o “menino” e era “opa, Evaldo Gouveia, tudo bem?”. Veio reportagem, eu saía demais na (revista) Radiolandia. Eu só vivia em teatro. Uma vez o Chico Anysio disse que ia a Lisboa “mas o (violonista) Mão de Vaca ta com ‘não sei quem’ no Chile, tu tem violão elétrico?”. (resposta imediata) “e dos bons”. Mentira, mas dois dias depois eu tava voando com o Chico.

OP – Muitas das suas canções com o Jair, como “Sentimental demais”, “Alguém me disse”, “O trovador”…
EG –
(interrompendo) “O trovador” foi assim, o Jair Amorim falou assim pra mim “Evaldo, eu queria ver se eu fazia uma marcha rancho tipo Lamartine Babo”. “Engraçado, de fato, falta fazer uma marcha-rancho, né, Jair?”. E eu comecei, “sonhei que um dia eu era um trovador”. Ele disse, “nos velhos tempos que não voltam mais”. Eu disse, “pronto! Ta pronta”. E foi num minuto.

OP – E o cantor que fez sucesso com essas músicas foi o Altemar Dutra (1940 – 1983). Como era a relação de vocês?
EG – Ali o negócio foi sério. O (radialista Osvaldo) Sargentelli (1924 – 2002) me chamou na Rádio Guanabara, “eu tenho uma novidade aqui”. Ele tinha uma consideração muito grande por mim. Quando ele disse isso, eu me mandei pra lá. (Sargentelli) “Ta vendo esse menino aqui? Ele trouxe uma carta do Espírito Santo, mas ele não precisa de mim. Ele precisa é de você, por que ele é cantor. Ele canta todo o repertório de vocês”. Levei pra o Altemar pra almoçar lá em casa e ele começou a cantar. Altemar sempre foi cantor no Espírito Santo. Ficamos lá conversando, bebendo, e, no dia seguinte, levei ele lá na rádio. Ele fez o teste, passou, e três meses depois gravou. Nossa relação era de lascar, era de copo. Relação de copo é danado, né? Quando eu fazia uma canção e mostrava pra ele, ele batia com pernas e fazia “Eh! Eh!”, querendo dizer que era um novo sucesso.

OP – Ele foi seu melhor intérprete?
EG – Não, não é que tenha sido o melhor. É que a voz dele se adaptava e ele cantava a dupla com amor.

OP – E quem foi seu melhor intérprete?
EG – Não sei até hoje. Acho que fui eu mesmo, só que eu não quis. Eu fui o cara mais procurado nos anos 60, mas tinha medo por causa do Ceará. Tinha medo de eu gravar e estourar tudo aí e o povo dizer que eu tinha abandonado o Trio Nagô. Mas o Trio Nagô acabou por eles mesmos.

OP – E como anda seu trabalho hoje?
EG –
O mais importante é que a minha cabeça sempre foi boa. Eu plantei a minha vida, justamente pra hoje. Hoje, eu canto pela necessidade de público, mas também não vou de graça. Se for um amigo, eu vou legal. Mas, sempre, não. A minha vida sempre foi assim. Eu comprei muitos imóveis no Rio de Janeiro e, hoje, vivo de renda. Eu adoro o Rio. É a cidade mais linda do mundo.

OP – Você gosta muito de contar suas histórias e, hoje em dia, muitos artistas estão vendo suas histórias vivarem filmes. Se fossem fazer um filme sobre sua vida, como você gostaria que fosse a primeira cena?
EG –
(para um pouco, olha pra cima e diz com um sorriso) Cantando uma canção e beijando uma mulher bonita. Era num teatro, por que eu nasci dentro da música e minha vida sempre foi o teatro, namorando mulher de teatro, e tinha que ser mulher bonita. Namorada de Evaldo Gouveia tinha que ser bonita.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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