Transgressão parece ser a palavra que guia o trabalho e a vida de Vitor Araújo. Pianista pernambucano, Vitor, aos 21 anos, já fala sobre sua produção artística com a mesma propriedade de quem já está há anos no mercado. Só eu consigo fazer o que vem à minha cabeça, dispara ele com um tom de quem não está muito a fim de papo. Convidado para uma apresentação aberta hoje no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, dentro do projeto Pôr do Som de Recitais Didáticos, Vitor começa a se mostrar mais à vontade na conversa por telefone quando começa a falar de sua carreira.
Definindo seu começo como uma coisa bem classe média, Vitor (foto de Beto Figueiroa) começou a estudar música formalmente aos 8 anos. Passou um ano aprendendo a ler partituras e outros assuntos da teoria musical no Conservatório Pernambucano de Música, até optar por aprender a tocar um instrumento. Mas porque a escolha pelo piano? Não sei. Talvez porque fosse bonito, porque fosse preto, com várias teclas. Foi uma decisão bem infantil. Como não tinha piano em casa, usava o do colégio para se exercitar.
Tomando gosto pelo instrumento, aos 16 anos, ele gravou a DVD-demo Variando no Salão Nobre do Teatro Santa Isabel em Recife, que chamou a atenção pela técnica e pela polêmica envolvendo a interpretação de Frevo, de Marlos Nobre. O número, escolhido para encerrar a apresentação, vinha repleto de improvisos, unindo o erudito e o popular, do jeito que Vitor gosta. O autor considerou aquilo uma ofensa, um deboche, como se o pianista quisesse melhorar a composição e até o ameaçou de processo. Não fazia ideia de que a caretice das pessoas levaria a tanto. Achei isso tão burocrático e tão pouco artístico. Fiz por que achava massa. Foi uma coisa espontânea. Para resolver a questão, Vitor substituiu a peça de Marlos por uma de Cláudio Santoro. A nova escolha, Vitor explica: Marlos e Cláudio não se davam bem.
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Fã de artistas tão díspares quanto Mombojó e Villa-Lobos, passando por standards do jazz como Miles Davis e John Coltrane, Vitor Araújo guia sua música por uma trilha entre o erudito do conservatório e o popular, daí ele se definir como um músico erudito de rua. Esse estilo o faz receber convites curiosos, como aconteceu em 2008 quando foi chamado para participar do festival Abril pro Rock, em Recife. Seu piano solo tocou entre os shows de Wander Wildner e Lobão. Foi uma das coisas mais loucas da minha vida. Me fez sentir um pouco revolucionário. Saí do palco tremendo, com medo das pessoas me mandarem embora. Mas, e o resultado? Todo mundo achou muito legal. Imagine umas seis mil pessoas em pé, tomando cerveja e pedindo silêncio pra ouvir. Também dessa mistura, saiu a banda Seu Chico, com repertório dedicado à obra de Chico Buarque. Com acento pop, a banda formada por percussão, piano elétrico, voz e dois violões de sete cordas já se prepara para estrear em DVD.
Em Fortaleza, Vitor apresenta seu novo concerto, Angústia ou Paixão e Fúria. Trata-se da primeira parte de uma trilogia que vai seguir com A infância e O orgasmo. É uma mistura entre concerto e monólogo. Com várias músicas próprias e interpretações que ilustram como a paixão pode catalisar esses sentimentos de fúria. Preferi começar falando sobre a coisa ruim, da explosão, da raiva, do ódio. No segundo, da doçura da inocência e, no terceiro, do hedonismo. É bem complicado, bem lombroso. O pessoal jovem vai gostar, explica ele que ainda vai incluir Paranoid Android, do Radiohead, e Toc, de Tom Zé, ambas do seu DVD de estreia, Toc ao Vivo no Teatro de Santa Isabel (Deckdisc, 2008).
O projeto Por do Som de Recitais Didáticos faz parte do Programa de Educação Tutorial (PET) do Curso de Educação Musical da Universidade Federal do Ceará. Realizado a cada 15 dias no Bosque Moreira Campos do Campus do Benfica, o projeto procura estimular o conhecimento e a formação de plateia, tanto dentro da comunidade acadêmica quanto das escolas públicas. Para isso, foram convidados para esta edição 50 alunos, entre 14 e 18 anos, da Escola Municipal Iracema, de Messejana. Formado por estes alunos, o show de abertura fica com os Acadêmicos da Casa Caiada. A proposta é que cada convidado, além de apresentar seu show, fale sobre formação, experiência e seu instrumento. Pelo Por do Som, já passaram, entre outros, Manasses, Marcelo Leite, Carlinhos Crisóstomo e a dupla Finlândia. Para as próximas semanas, estão programadas apresentações de Marco Túlio, Carlinhos Patriolino e Cainã Cavalcante, no dia 24, e Marimbanda, dia 12 de novembro.
Para Vitor, a iniciativa do projeto é válida por aproximar o público da linguagem erudita. A música erudita ainda é muito ligada à classe, ao dinheiro. A linguagem é pra gente rica, a estética, até o lugar em que ela toca. Alguns vanguardistas, como o Arthur Moreira Lima, fazem shows em caminhão. Ta caminhando. A coisa só muda quando vem de uma naturalidade artística. Tem que sair dessa linguagem de aristocracia, lembrar que não estamos mais no século XV. E qual a expectativa para esta apresentação? Eu nunca sei como a plateia vai reagir. Mas o concerto é tão diferente que, queira ou não, as pessoas vão prestar atenção. Acho muito difícil as pessoas não pararem para observar.