Nos antigos corais de igreja, era terminantemente proibida a participação das mulheres. Se elas não deveriam sequer falar, cantar mesmo é que não poderiam. Para suprir a carência das vozes femininas, os compositores e regentes faziam uso dos castrati. Quase sempre vindos de famílias pobres, eles eram cantres que, quando crianças, se submetiam a uma cirurgia de castração para que os hormônios masculinos não lhe chegassem ao sangue, conservando assim a voz ainda infantil aguda. Os primeiros castrati surgiram ainda no Império Bizantino e com o tempo foram deixando de existir.

Foi então que descobriram em Fortaleza a voz natural de Paulo Abel do Nascimento. Vindo de uma família pobre de 15 irmãos, ele se consagrou no mundo por conta de seu registro vocal único. Como um fenômeno que venceu as barreiras e preconceitos da empáfia erudita, ele encantou as plateias dos grandes teatros internacionais, dos Estados Unidos à Coréia, cantando peças escritas nos séculos XVI e XVII especialmente para as vozes agudas. Seu alcance nas notas mais altas era fruto de uma baixa densidade de testosterona, que conservou sua voz infantil, tanto quanto a dos castrati.

Muitos séculos separavam Paulo Abel da música que o encantou, o que não o impediu de encantar muitos fãs. Um deles é o realizador Gabriel Petter que está finalizando o documentário Paulo Abel – Ombra mai Fu. Fruto de uma pesquisa que começou em 2009, o filme conta através de depoimentos de amigos e colegas de trabalho a vida do cantor falecido em 1992, aos 35 anos, por conta de complicações respiratórias decorrentes do vírus HIV.

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Gabriel Petter conheceu a voz de Paulo Abel em 2009, quando fazia o curso de Canto e Fisiologia da Voz, na UFC. Numa das aulas, ele assistiu um trecho do filme americano Ligações Perigosas, que conta com a participação do contratenor (cantor que atinge notas agudas) cantando Ombra mai Fu, ária da ópera Xerxes (Haendel. Para participar da trama de Stephen Frears, que acabou o transformando numa estrela de nível internacional, Abel teve que ultrapassar três audições e concorrer com outras 72 vozes.

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“Eu fiquei impressionado com a história dele, um menino pobre que encantou a Europa. A partir desse momento, fiquei com vontade de fazer alguma coisa, só não sabia o que”, conta Gabriel que teve muita dificuldade de conseguir reunir material suficiente para sustentar seu filme. “Aqui no Ceará existe um processo forçado de esquecimento do Paulo. Provavelmente, por que ele era muito controverso”. Entre as controvérsias, o diretor cita o episódio do Festival de Inverno de Campos de Jordão quando o maestro Eleazar de Carvalho (1912 – 1996) chamou a voz aguda do cantor de “imoral”.

Contando principalmente com fotos, documentos e vídeos guardados em arquivos pessoais, além da memória dos entrevistados, o filme relembra casos curiosos da trajetória do artista. Filho de uma família fervorosamente católica, ele manteve sua doença em segredo até o dia de sua morte. Com sua aparência magra causando estranhamento nos amigos, somente o pianista Claude Fondraz sabia que ele estava com AIDS. Há também histórias pitorescas como quando ele deixada de lado a erudição pra cantar Um dia de domingo nos bares da Praia de Iracema. Recorrendo ao Youtube, o filme traz também alguns raríssimos trechos de apresentações em palcos europeus.

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“Eu quis fazer o mais simples possível para poder atingir o maior número de pessoas”, explica Gabriel Petter que, com esse documentário, pretende refrescar a memória do Brasil e do mundo em relação à voz de Paulo Abel. Em dois anos, ele pretende lançar uma nova biografia do cantor, para dar sequencia à que foi escrita pelo professor e regente Elvis Matos (Fundação Demócrito Rocha). Ao longo de 2012, Gabriel também planeja lançar no Brasil os dois únicos discos gravados pelo artista, na Europa. “Como o Paulo morreu cedo, sua carreira ainda estava em construção. Mas ele foi o único soprano da idade moderna. Essa ocasião dos seus vinte anos de morte deve ser um marco. Que o filme seja uma inspiração”.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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