Texto do jornalista Rodrigo Cunha (rodrigoescunha@gmail.com)

Mesmo quarenta anos depois, “Acabou Chorare” (Som Livre, 1972), dos Novos Baianos, mantém seu status inovador e atual dentro da música brasileira. Considerando todos os textos relacionados ao álbum, em diversos artigos e livros, trata-se de uma afirmação óbvia, mas que se tornou tão instigante pra mim após ver a apresentação de Baby do Brasil em novembro passado na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. Além da aparição de Caetano Veloso, o show contou com a presença de ex-integrantes da trupe Dadi e Paulinho Boca de Cantor. O mentor Luiz Galvão também estava presente, em meio ao público, sob aplausos a cada menção sua feito pelos artistas no palco.

No show “Baby Sucessos”, a carioca de alma baiana e cabelos-púrpura, acompanhada pela guitarra do filho Pedro Baby, esqueceu grande parte de seu atual repertório gospel e revisitou os sucessos da carreira-solo. A cada sucesso apresentado, fez-me remeter a ideia de que cada um conseguiu atingir suas carreiras mais ou menos bem-sucedidas – certamente com um público maior e amplo sucesso comercial – porém, sem o mesmo senso de criatividade e de circunstâncias atingidas em “Acabou Chorare”.

Tratava-se de um disco prestes ao fracasso. Após gravar um compacto duplo em 1971, “Novos Baianos e Baby Consuelo no Final do Juízo” (com as músicas Dê um Rolê, Você Me Dá um Disco?, Caminho de Pedro e Risque), Nelson Motta, então produtor musical da Philips, sugeriu que gravassem todas as músicas do próximo disco na casa do técnico de som Jorge Karan, em apenas dois canais e com poucos instrumentos. Galvão contou em entrevista para O Estado de S. Paulo, de 20 de novembro de 2010, que o grupo não gostou do resultado, mesmo a gravadora querendo lançar o disco desta maneira. Os músicos romperam com a Philips e receberam abrigo da Som Livre de João Araújo, pai de Cazuza, que ofereceu melhor condições de produção para o disco.

Quem teve acesso ao álbum original conheceu o cuidado gráfico que “Acabou Chorare” recebeu na nova gravadora: ilustrações permeiam o encarte de oito páginas, bem como letras manuscritas e textos um poema de Augusto de Campos (“Só Somente Só”) e do próprio Luiz Galvão. O designer Antonio Luiz, o Lula, ficou responsável pelas fotos e pelo projeto gráfico do álbum. Na parte musical, além de Paulinho (ex-crooner de orquestra do interior baiano), Moraes, Galvão (ex-engenheiro agrônomo), Pepeu e Baby (niteroiense), acompanhavam o conjunto A Cor do Som (com Pepeu, Jorginho, Baixinho e Dadi). Junto com o percussionista Baixinho, todos colaboravam também para formar um regional bem brasileiro, entre cavaquinhos, bumbos, pandeiros, maracas, bongôs e triângulos.

Aliás, a proposta deste segundo álbum dos Novos Baianos, além da verve tropicalista deixada por Caetano Veloso e Gilberto Gil (entre outros precursores de outros campos artísticos como Hélio Oiticica e Rogério Duarte), o disco veio com a proposta de recuperar as raízes brasileiras (uma identidade cultural mal-descoberta na época), uma mescla entre samba, forró, frevo, choro e o rock, algo bastante inusitado para a época. Cabe relacionar esse resultado com a lendária visita de João Gilberto ao apartamento dos hippies baianos, para mostrar o samba de Assis Valente e ensinar técnicas de voz e violão.

Em julho de 2010, a Rolling Stone brasileira tratou de traçar um perfil do álbum eclético, retratando o desenvolvimento do conjunto até chegar ao disco antológico. Um dos pontos traçados pela matéria relaciona a ordem das gravações próprias do grupo na prensagem final com os endereços da comunidade no Rio de Janeiro: as músicas do lado A (Preta, Pretinha, Tinindo Tricando, Swing de Campo Grande e Acabou Chorare) foram arquitetadas no apartamento em Botafogo, na Zona Sul; e o lado B (Mistério do Planeta, A Menina Dança, Besta É Tu e Um Bilhete pra Didi) foi resultado das inventivas criações proporcionadas no sítio alugado em Jacarepaguá, o “Cantinho do Vovô”, onde os baianos se aquartelaram entre os anos de 1971 e 1975.

A mudança da Philips para a recém-criada Som Livre não foi de grande avanço em termos técnicos, pois os estúdios brasileiros ainda viviam de forma limitada, praticamente artesanal. Eustáquio Sena foi escolhido para produzir o disco, que foi gravado no estúdio de quatro canais da Somil, especializado em áudio para cinema. Porém, o entrosamento entre os músicos era tanto que o álbum saiu com uma qualidade surpreendente, até para os dias atuais. O processo consistia em utilizar os míseros quatro canais, que depois eram reduzidos para apenas dois. As vocalizações entravam depois da mixagem do máster. Portanto, errar não era permitido, ou senão, teria de refazer o take.

Enfim, o disco está tinindo trincando até os dias de hoje, graças a essa somatória de músicos e técnicos, talentos difíceis de reunir no concorrido mercado fonográfico de hoje, quase todo dominado por multinacionais, abaladas com a redução nas vendas de CDs. Retoma-se por aqui a consagração do vinil, seja por audiófilos colecionadores ou por jovens que buscam ter a experiência auditiva de anos atrás. “Acabou Chorare” é uma das peças difíceis de ser encontradas em sebos, disputadas inclusive pelos vendedores que optam por pagar mais caro para ter o vinil, segundo escutei do proprietário de uma loja de São Paulo, onde tive a felicidade de conseguir um exemplar do disco. Trata-se de álbum empolgante de se ouvir e representativo de uma década inventiva e gloriosa da música brasileira.

SÓ SOMENTE SÓ
Augusto de Campos

eu disse aos novos baianos
que eu não sou crítico
que um poeta se fêz passar por crítico
para dizer algumas coisas
quando os assim ditos
não estavam vendo nada
nem mesmo a boa palavra

agora não é mais preciso
as cartas já estão na mesa
todos aparentemente sabem tudo
e quem viver verá
mas não verá tudo se não vir
o céu da bahia da boca do cantor
morais Galvão Paulinho baby & cia
não ouvirá nada se não ouvir
só somente só
preta pretinha

entre o primeiro lp e este
entra joão Gilberto
(pausa)
o dom eles já tinham
agora o som mais perto
mais experto mais
certo

descobriram o silêncio

bem assim felicidade
assis valente
o alegre filicídio da suicidade
do brasil pandeiro

pena que o disco não seja a cores
pra vocês verem a cor do som
o bamba e respeitado cavaquinho
baixinho & bumbo & boca & baby &
o som da cor do gato felix
ator e dançarino baiano
que o disco não registra

pena que isso não seja a sons

eu não sei se o sonho acabou
eu não sei se o sono acabou
eu não sei se o som acabou

mas acabou chorare

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles