14AdrianoFagundes04É bem sintomático que Mariene de Castro tenha batizado seu mais novo disco de Colheita. São quase 20 anos de carreira, quatro discos gravados, alguns prêmios e muitos shows pelo exterior. No Brasil, se seu repertório próprio ainda não é tão popular, seu nome rodou bastante quando lançou um tributo a Clara Nunes em 2013. Depois de subir em trio elétrico e ser comparada pelos franceses a Edith Piaf (1915 – 1963), ela está só colhendo frutos dessa trajetória.

Por isso, ela reuniu a banda com quem toca há cerca de cinco anos, chamou outros amigos e montou um novo repertório inédito. Uma marca das 14 novas canções de Colheita é a aproximação com as rodas de samba e pagode do Rio de Janeiro, cidade onde a baiana está radicada. Mesmo fiel ao conterrâneo Roque Ferreira, compositor mais frequente no novo disco e na carreira de Mariene, aqui ela se afasta um pouco dos sons afro-baianos que marcaram o disco Tabaroinha (2012) e sai pra sambar em outros terreiros.

Composta por Nelson Rufino, a faixa que dá nome a Colheita, por exemplo, foi um presente de Zeca Pagodinho, que a havia escolhido para seu próximo disco. “É o título do disco por conta da gratidão, do sentimento de quem plantou e agora está colhendo”, explica Mariene, que aproveitou para convidar Zeca para um dueto que conta ainda com a gaita de Rildo Hora.

Outra contribuição fundamental de Zeca Pagodinho foi reunir uma turma de compositores para apresentar seus sambas para Mariene. Dentre as mais de 50 composições, ela escolheu, entre outras, a ótima Eu carrego patuá, onde reafirma suas crenças e convicções, e o samba-enredo Aquarela da Amazônia, que foi reforçada pelo violoncelo de Jaques Morelenbaum e pela bateria da Portela. Desse encontro de compositores também saíram Tirilê e Mágoa, parcerias de Roque Ferreira com Dunga e Toninho Geraes, respectivamente. Curiosamente, foi através dos parceiros que ela conheceu mais estes dois sambas do compositor baiano. Ainda da turma de Pagodinho, Me beija, de Arlindo Neto, Marquinhos Nunes e Renatto Moraes, é uma das melhores do disco.

colheitaE se a ideia de Colheita era celebrar o encontro, Mariene trouxe para mais perto alguns nomes que fizeram parte da sua história. Beth Carvalho divide e atualiza os versos de Samba da benção, acrescentando à lista de agradecimentos nomes como Martinho da Vila, Marquinhos PQD, Monarco e Sombrinha. Já Maria Bethânia aumenta a intensidade de A força que vem da raiz, mais uma de Roque Ferreira. A canção faz um tratado sobre a força histórica do samba (“Aprendi na senzala a tristeza da rima, do chicote que estala e reduz à ruína”). Portuguesa de ascendência cabo-verdiana, a cantora e compositora Sara Tavares não pôde comparecer em Colheita, mas cedeu a deliciosa Balancê.

Com voz bem marcada e cheia de personalidade, Mariene fez uma releitura de Impossível acreditar que perdi você, sucesso de Márcio Greyck, com cheiro de pagode paulistano. A música fez parte da trilha sonora do filme Quase samba, que contou com a própria Mariene no elenco. “Quando vi a cena com essa música, eu fiquei muito emocionada. Sei que parece estranha ao meu repertório, mas não quis questionar. É a mesma estranheza que aconteceu quando Bethânia gravou ‘É o amor’”, explica a cantora afirmando que não tem vontade de cantar fora do ambiente do samba. “Posso fazer outras coisas, mas são coisas que trago pro meu universo”. E nessas coisas está Nós dois, samba obscuro de Cartola interpretado com a ajuda do bandolim virtuoso de Hamilton de Holanda.

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A dose mais forte de carioquice no samba de Mariene de Castro, não a afastou do seu batuque baiano, mas acrescentou uma leveza no canto, uma ginga malandra que permeia esta Colheita. Da mesma forma, ter cantado Clara Nunes num projeto que marcou os 30 anos de morte da mineira, ajudou a levar seu próprio nome para lugares onde ela ainda não havia cantado. “Sou muito grata de ter vivenciado isso, de ter interpretado esse repertório. O que vem de saldo é que foi lindo, um país que eu desbravei. Eu lá cantando Clara e as pessoas cantando as minhas músicas”, lembra ela, que agora tem outro plano. “Agora vou focar no mundo. Agora é hora de levar pro mundo esse sotaque da Bahia, esse sotaque que é tão importante”.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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