Foto: Chico Alencar

Foto: Chico Alencar

O POVO – E nessa mesma época, você já mexia com música.

Lenine – Eu já tinha feito algumas coisas pontualmente, estudando e morando em Recife. Já tinha feito disco independente, com o (grupo) Flor de Cactus. Mas, naquele momento, sofríamos todos com uma síndrome de vira-lata. O Nordeste no Brasil especialmente. O autoflagelativo, “a gente não faz nada que preste”. Não tinha muito mercado e você tinha duas opções naquele momento: era Rio ou era São Paulo. E eu quis testar realmente. Quis saber o que, realmente, seria um futuro possível para mim. E, em recife, não dava por que tudo que eu podia fazer já tinha feito.

O POVO – Isso tudo já com um trabalho autoral?

Lenine – Isso já iniciando, compondo. Nesses cursinhos tinha muitos festivais de música. E eu participei de alguns deles. Aquele momento era um termômetro pra mim.

O POVO – E que impacto teve dentro de casa quando você decidiu largar o curso, aos 20 anos, para fazer música?

Lenine – Eu lembro muito disso. Estava no terceiro ano. Na mesa de jantar, onde a gente tinha plenária pra tudo, eu soltei a bomba. Disse assim: “eu vô trancar a faculdade e vou pro Rio”. Eu passei muito cedo (no vestibular), com 17 anos, e a família de uma forma muito carinhosa, por que eu sabia o quanto isso era difícil pra eles, me deu uma passagem para ir visitar os primos no Rio. Aquilo foi marcante pra mim por que eu pude respirar um pouco uma cidade efervescente, plural. Eu achava. Hoje, eu morando depois de tantos anos, é bem provinciana. Talvez, a única cidade cosmopolita no Brasil seja São Paulo. Mas, naquele momento, eu me apaixonei pela cidade. Então, passou um tempo, e, três anos depois, eu cheguei e disse: “ó, pai, vou trancar a faculdade, vou pro Rio, vou testar”. Silêncio total e ele falou: “por que demorou tanto? Três anos e meio estudando um negócio. Podia ter feito esse teste antes”. Ou seja, até nisso ele é sábio. Jogou tudo na minha mão e eu fui, achando que ia ficar um tempo.

O POVO – Ainda achava que iria voltar…

Lenine – Isso. Era só um teste. Tranquei a faculdade… Essas coisas não têm volta. Coincide com as descobertas do ser humano. Você com 20 anos, a vida… Aí o filho já nasce em seguida. João (Cavalcanti, músico) eu tive com 21 e ele já está fazendo 37. Todos os meus filhos são cariocas. São três. E, na verdade, eu não fui pro Rio. Eu tive a sorte de cair numa cidade do interior, a 50 metros do Rio de Janeiro que é a Urca (risos). É mesmo. Eu tenho conta no padeiro, no cara da farmácia, no barbeiro, no jornaleiro. Dos 38 anos que eu tô no Rio, tô há 30 na Urca. Nos outros oito anos, eu fiquei entre Jardim Botânico, Santa Tereza e Botafogo.

O POVO – E em Botafogo, você morou na Casa 9, que dá nome ao seu selo? (A casa da Rua Teresa Guimarães também abrigou nomes como Jards Macalé, Sônia Braga e Hélio Oiticica, todos em início de carreira).

Lenine – Ali era uma república, né? Não era a casa onde eu morava. Era uma Faixa de Gaza. Um território ocupado, de paraíbas. E quando eu falo “paraíba” tem essa abrangência. Tô falando no Nordeste, por que, para alguém que não conhece, pode achar que eu tô só restringindo. Não, eu tô abrangendo. Quando digo “paraíba”, é do Maranhão até o São Francisco.

O POVO – Queria saber mais sobre sua chegada ao Rio de Janeiro. Já tinha uma turma esperando lá?

Lenine – Não, todo mundo chegou um pouquinho depois, no final de 1980, 1981. Eu cheguei no final de 1979. Muito dessa ligação se deu por que estávamos distantes de casa. E aí você aproxima naturalmente. Criou-se ali um núcleo duro de criação que gerou muitos trabalhos e que, até hoje, parte desse núcleo são parceiros meus. Próximos, queridos e cúmplices.

BOA6O POVO – E era uma turma de pernambucanos?

Lenine – Tinha tudo. Mas, nordestinos. E era assim, dava pra cair (se aproximar). Qualquer pessoa que tivesse de passagem pelo Rio podia cair. Então, era um ponto de encontro de nordestinos. Mas, nem eram só nordestinos, por que ali terminou com a gente se encontrando com vários núcleos de várias regiões do Brasil tentando um espaço, como nós também estávamos. A gente descobre ali que o Rio tinha essa coisa, como São Paulo, de agregar vários brasis ali convivendo. Então, rapidamente, deixou de ser uma coisa nordestina pra ser mais dos excluídos, dos que estavam permeando o acontecimento. A moçada nova querendo um lugar ao sol.

O POVO – Seus dois primeiros trabalhos são divididos. O Baque solto (1983) com o Lula Queiroga e o Olho de peixe (1993) com o Marco Suzano…

Lenine – (interrompendo) Até hoje meus discos são divididos. É por que, no decorrer do processo, você assina uma autoralidade. Mas, essa autoralidade está dividida em vários momentos e de maneiras diferentes em tudo que eu faço. Aqui é a coisa da missa. Como eu ritualizei isso ao ponto de o ajuntamento de várias assinaturas compreendem uma outra maior. Sacou? Tudo meu sempre foi coletivo. Talvez fique mais evidente por que dividimos, no Baque solto (1983) Lenine e Lula Queiroga. Mas, ali, no próprio desenho, ta todo mundo documentado. Ivan Santos, Bráulio Tavares, ta todo mundo ali. Foi nós dois por que a gente tinha feito um show, Roberto Menescal viu e disse “eu quero gravar isso”. Gravamos praticamente ao vivo dentro do estúdio. Mas, sempre foi um núcleo, sempre foi um coletivo.

O POVO – E como foi essa primeira gravação?

Lenine – Foram uns 20 dias, um mês. Mas, era uma coisa que estávamos testando no palco. Então, o Baque solto foi o início de tudo. O palco, eu já tinha uma vivência com ele. Eu já vinha dialogando com ele e incrementando esse processo. Já tinha algum chão andado com o palco. Com o disco não. Então, o Baque solto sofre muito com essa desinformação. A gente, dois garotos de 21, 22 anos. Isso tudo pesou. A gente não teve ninguém produzindo. Quem nos ajudou num determinado momento foi Luiz Roberto Bertrami. Foi carregado de imaturidade aquele primeiro momento. E só foi nós dois por que o Menescal viu o show e éramos nós dois. Fazíamos isso à meia-noite no Teatro Ipanema, depois da última sessão de teatro, que terminava tipo umas 23h. A gente tinha que esvaziar tudo, montar o PA, alinhar, passar o som, pra meia-noite começar. Era uma correria.

O POVO – E do Baque solto para o Olho de peixe são 10 anos.

Lenine – Isso. Parece um hiato, né? Mas, nesses 10 anos, eu peguei algumas cadeiras cativas nos trabalhos de alguns intérpretes. Elba Ramalho, por exemplo. Eu exercitei a composição de uma maneira muito mais profunda e passei a me encontrar nessa categoria de compositor, mas do que qualquer coisa. Só fiz o Olho de peixe com parte de uma produção que eu me sentia capaz de interpretar. Eu não me sinto capaz de cantar tudo que eu componho. Mais de 50% do que eu componho não canto. O exercício da composição é muito mais abrangente, muito maior. E o filtro é outro. Como intérprete, eu sou péssimo ator. Se eu não estiver 100% entronizado cada palavra que eu tô dizendo, eu não consigo dizê-la. Como compositor, não. A equação é outra. É tentar entrar na cabeça do outro e imaginar palavras que possam soar verdadeiras e que ele nunca disse. É meio psicótico, velho. É você se projetar. Tem a ver com psicofonia. Tem algumas músicas que parece que foram psicofonadas, que não é minha não. Tava ali, eu peguei e, se eu tivesse pego, o cara da esquina pegava.

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About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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