É difícil separar o que é vida e o que é carreira na história de Abigail Izquierdo Ferreira. Filha de ator com bailarina, já não é novidade a história de que ela “atuou” pela primeira vez no teatro quando era ainda um bebê de poucos dias. Oficialmente, essa carreira começou um tempo depois e já toma mais de 80 anos de uma vida que, em 1º de junho de 2017, chegou aos 95. O fato é que Abigail é para poucos. Melhor falar de Bibi Ferreira.

Sob um nome artístico tão simples, Bibi tornou-se uma estrela de vulto internacional e fôlego sem limites. É isso que ela mostra em Histórias e Canções, espetáculo recém lançado em CD e DVD pela gravadora Biscoito Fino. O show, meio peça de teatro, é cercado de todo o luxo que a protagonista pede. São 45 canções interpretadas e rearranjadas cheias de personalidade. Para acompanhar essa tour que passa por tangos, óperas, bossas e sambas, quem acompanha Bibi Ferreira é a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, composta por 45 músicos. Além desse time, um quarteto de instrumentistas do nível do pianista Itamar Assiére e do baixista Zé Luiz Maia.

A tour musical de Histórias e Canções começa onde nasce Bibi, quando ela ainda pequena assistia os grandes musicais do cinema. “No século XVII eu devia ter 13 ou 14 anos”, brinca a artista antes de By The Waterfall, trilha do filme Belezas em Revista, de 1933. Dos musicais que assistiu, para os musicais em que atuou. É quando ela lembra Hello Dolly e O homem de la mancha. Deste último, a interpretação assertiva e imponente de Sonho Impossível é de prender a respiração.

Para Bibi, o que equivalia no Brasil aos musicais da Broadway era o rádio e suas vozes inesquecíveis. Esse é o mote para um ponto alto do show: uma homenagem a Elizeth Cardoso (1920 – 1990). Um pot-pourri de sete canções relembra a Divina Elizeth que, nas palavras de Bibi, “primava por ter um repertório de extremo bom gosto”. E tome Nossos Momentos, Meiga presença, Sem Mais Adeus e outras.

Para dar um respiro na emoção, Bibi conta que o pai – o ator Procópio Ferreira – gostava muito da opulência e do exagero, o que justificava sua predileção pela ópera. Ela, criança, tentava cantar junto aquele repertório. Mas, como lhe faltava o francês, o alemão ou o italiano, lhe sobrava tentar encaixar as letras brasileiras naquelas melodias. Assim, ela misturava Charles Gounod com Dorival Caymmi, Giuseppe Verdi com Noel Rosa e Gioachino Rossini com Ary Barroso. Dentre todas essas misturas, a mais surpreendente é o Samba de uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça, com a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Gargalhadas no palco e na plateia.

“Estou falando demais não, né?”, pergunta Bibi antes de lembrar que o espetáculo é de histórias e canções. E dessas histórias tem a de quando conheceu Noel Rosa (1910 – 1937), mote para puxar Conversa de Botequim. Da crônica bem humorada ao drama nebuloso, ela lembra as canções de Chico Buarque que interpretou para a peça Gota D’água, um dos grandes momentos desses 80 anos de carreira de Bibi. Mas não se pode falar em sucesso de Bibi sem lembrar Edith Piaf (1915 – 1963). A diva francesa renascida na voz da fã brasileira é lembrada através de La Vie En Rose, L’hymne a l’amour e outras.

O único ponto fora da curva em Histórias e Canções está no tema introdutório, Malandragem (Frejat/ Cazuza). Sem nenhuma conexão com o resto do repertório, provavelmente foi escolhido pelo verso inicial. Mas é importante lembrar que Bibi Ferreira não é uma garotinha. Pelo contrário, é uma senhora de 95 anos cuja larga experiência lhe fez uma gigante, uma bandeira de resistência enquanto mulher e artista. É preciso respeitar e valorizar essa idade e esse tempo, mesmo que ela própria o ignore e escolha seguir trabalhando. O cansaço e as rugas estão presentes em Bibi, como seria inevitável. Mas ela segue viva e vai ser assim enquanto a arte permitir.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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