Capa do disco “Quando a Noite Vem”, de Zé Renato

Charles Chaplin lamentava o fato da vida real não ter trilha sonora. De fato, não existe um diretor musical e um sonoplasta subindo sons e melodias que se adequem a cada momento da nossa existência. Ainda assim, quem não guarda lembranças embaladas por canções? Num misto de cinema e realidade, Zé Renato deu voz à trilha da própria vida no disco Quando a Noite vem, recém lançado pela gravadora Biscoito Fino.

A ideia nasceu de uma conversa com sua ex-esposa, Patrícia Pillar, sobre um disco com trilhas sonoras clássicas do cinema. A ideia não andou, mas permaneceu a vontade de criarem um disco juntos. “Pensamos, então, em uma seleção de canções que fazem parte da minha memoria afetiva”, conta Zé Renato, que convidou a atriz para ser diretora de produção e de arte no álbum. “Quando a gente começou a falar sobre um projeto juntos, eu insisti pra que ela estendesse a participação dela não só no repertorio, mas no estúdio. Ela disse que iria buscar a valorização do texto, na interpretação”, lembra. “Foi inédito para mim. Foi bacana por que acrescentou muita coisa. Estou sempre aberto e foi uma experiência a mais, além de outras que eu já tenho domínio”.

O resultado dessa parceria é um trabalho simples na concepção e sofisticado na delicadeza dos arranjos. O repertório quase todo é bem popular para quem já atingiu alguma maturidade, mas nada está ali por acaso. Costurado com o calor das memórias, Zé Renato juntou os óculos do avô, que ele criança usava para imitar Ray Charles cantando I can’t stop loving you, até uma viagem a Jericoacoara, em 2019, quando tocou no Festival Choro Jazz ao lado do amigo Renato Braz. Foi aqui no Ceará que o sanfoneiro Nonato Lima o apresentou a Seu olhar não mente, forró que ganhou um dueto com Céu.

A trilha de memórias deste vitoriense de 67 anos começou com Suave é a Noite, que ganhou arranjo e violoncelo de Jaques Morelenbaum. A composição de Sammy Fain e Paul Francis Webster foi trilha de um filme em 1962, estrelado por Jennifer Jones e Jason Robards. Para Renato, a lembrança mais forte era da versão de Nazareno de Brito que ganhou a voz de Moacyr Franco naquele ano. Outra cena que ficou marcada para ele foi de Adoniran Barbosa na TV cantarolando Bom dia, tristeza. “Já ouvi outras gravações, mas a primeira foi primeira”, comenta.

Nesse novelo de memórias, Zé Renato puxou outro fio que vem do Ceará. Canção de quem está só, de Evaldo Gouveia, entrou a partir de uma lembrança da gravação de Anísio Silva. “Ouvi essa música, fui para o violão e pensamos nesse arranjo com trompete. Ficou um clima meio de night club”, comenta ele que também lembrou de Esta tarde vi llover na voz de Roberto Carlos e incorporou a seu universo afetivo. E ainda Nenhuma Dor, pescada de Domingo (1967), disco que marca a estreia de Gal Costa e Caetano Veloso. “É um dos meus discos de cabeceira. Essa ideia veio muito antes, mas acabou sendo uma homenagem a Gal”.

Do projeto original de trilhas para o cinema ficou Arrivederci, Roma, que no Brasil ganhou o nome de “As sete colinas de Roma” (1957). “Essa já estava na lista. Apesar de João Gilberto não ter cantado, foi ele quem me inspirou”, revela Zé Renato que aceitou a sugestão de Patrícia Pillar para regravar Encantado, versão de Caetano Veloso para Nature boy. “Conhecia a versão original com o Nat King Cole e a Patrícia me apresentou à versão com a Maria Bethânia. Achei que poderia virar um fado e, como eu já ia para Portugal, aproveitei a viagem e gravei lá”.

Um misto de memórias boas e ruins também marcou o fim do Boca Livre, grupo vocal do qual Zé Renato fez parte desde a fundação, em 1979. Por divergências políticas, o quarteto se separou em 2021. Dois anos depois, eles ganharam o Grammy de Melhor Álbum de Pop Latino pelo disco Pasieros, dividido com o músico panamenho Rubén Blades. “É o maior prêmio da indústria fonográfica e, pra nós foi um prêmio que representa não só esse trabalho, mas o vocal brasileiro que é uma tradição”, comemora o músico. “A gente está sempre aberto e espero que, numa dessas voltas que o mundo dá, inclua, quem sabe, um retorno. Espero que essas diferenças sejam repensadas e sanadas, pra quem sabe a gente comemorar esse prêmio”.

Confira o repertório de “Quando a Noite vem”

1. I can’t stop loving you (Don Gibson)
2. Suave é a noite (Sammy Fain/ Paul Francis Webster/ Versão: Nazareno de Brito)
3. Bom dia, Tristeza (Adoniran Barbosa/ Vinicius de Moraes)
4. O seu olhar não mente (Nanado Alves/ Ilmar Cavalcanti)
5. Encantado (Eden Ahbez/ Versão: Caetano Veloso)
6. Esta tarde vi llover (Armando Manzanero)
7. Cantiga de quem está só (Evaldo Gouveia/ Jair Amorim)
8. Arrivederci, Roma (Allessandro Giovannini/ Pietro Garinei/ Renato Ranucci)
9. Nenhuma Dor (Caetano Veloso/ Torquato Neto)

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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