Amaro Freitas, pianista pernambucano, se apresenta em Paris (Foto: Hamilton Filho)

Um melódico “larararálarará” cantado em uníssono pela plateia encerrou, antes do tradicional bis, a participação do pianista pernambucano Amaro Freitas na quadragésima primeira edição do Festival Banlieues Bleues em Paris no início desse abril. Banlieues Bleues em tradução direta significa “subúrbios azuis”.

Uma noite fria, um lugar interessante, um caboverdiano simpático e sorridente vertendo vinho “rouge”, um vendedor de pérolas musicais em formas de LP que não pude comprar porque não caberia na mala, muitas propagandas de shows fabulosos, uma aura de expectativa, com pouco atraso na programação diversa e rica.

A música, explicou de forma afetuosa o pianista pernambucano que está sendo justamente exaltado pelo mundo, fora feito para sua mãe Rosilda. Estou me referindo ã música do “larararálarará”. E o “larararálarará”, que começou timidamente, foi tomando corpo à medida que o público foi perdendo o medo. Foram muitas repetições conduzidas por Amaro e obedecidas com prazer por todos nós. Com gestos simples com o dedo, com o rosto, com a voz, mandando repetir, repetir, para o encaixe em uma parte mais melódica que se apresentava como um refrão.

Uma sala inusitada, toda de madeira quando vista por fora, e de caráter super intimista para quem ocupa uma das suas poucas dezenas de cadeiras formando um “U” em cuja parte aberta estava o piano e a área de saída e chegada do músico. Ok, parece igual a todas, mas não é. É diferente nas paredes pretas, no clima “noir”, no teto baixo, nas madeiras soltas do piso da entrada que faziam barulho mas náo atrapalhava, em um simplismo elegante.

A fileira da frente fica a um metro do músico, que ao se mover até poderia ser tocado por quem a ocupa. Apenas três fileiras de cadeiras. A mais distante do instrumento fica a três ou quatro metros, configurando assim uma super intimidade entre música, músico e os felizes asseclas. É pequeno, mas o que ocorre lá dentro é gigante.

Amaro já lançou “Sangue Negro” (2016), “Rasif” (2018), “Sankofa” (2021) e agora lança “Y’Y” (Lê-se eey-eh, eey-eh). Foi o “Y’Y”, de profundidade amazônica que predominou em sua apresentação. Piano e outros instrumentos simulando sons da floresta, das águas, do ar, da colossal região brasileira que aqui na França desperta fervor. Aliás, um artista suingado, rítmico, alegre, tocando a Amazônia era tudo que os franceses queriam ouvir.

Conheci Amaro Freitas por meio do disco “Sangue Negro”. Não sei se foi o algoritmo ou alguém que me o apresentou, mas o impacto foi imediato. O fraseado é novo, o jazz é música do mundo, mas sobretudo tem sua assinatura. Lembro de buscar na internet algo escrito a respeito daquele jovem e a leitura média era “se é assim o disco de estreia, imagine o que ele será capaz de fazer”.

Amaro venceu o Brasil, o que não é fácil. Jovem negro da periferia de um país assassino de adolescentes pobres, quis fazer jazz quando ganhou um disco do Chick Corea. Mas para isso é preciso ser bem íntimo das teclas de um piano. E aí mora um dos muitos problemas. Como ser íntimo de um instumento, se sequer lápis e papel, que seria mais natural, é facilitado para brasileiros que não têm pais ricos e pele branca? Como ter piano para praticar? Como fazer os pais acreditarem e conseguirem proporcionar aulas de piano? Como encontrar um projeto social que oferte piano, ao invés de curso básico de eletricista ou cópias de chaves? Por óbvio, nada contra eletricistas, nem chaveiros, mas em um país que mais apresenta muros que estradas, a prioridade é a sobrevivência. Arte fica para depois, se der…

Outra maneira de entender onde esse jovem chegou é ouvindo “Cais” onde faz a cama para Criolo e Milton Nascimento. Três gênios negros que venceram o Brasil e que hoje fazem música que não é para rápido consumo. Essa tríade deixou nas redes esse bálsamo. Sugiro conferir.

Voz potente, sorriso convincente, empatia, carisma, uma doce saudação num tom ameno, quase indolente, agradece, mexe nas cordas do piano colocando ali, elementos estranhos que vão trazer novos sons. “É o novo, é o novo, é o novo, é o novo” como disse Belchior. Assim surge mais um artista fabuloso em um incrível, cenário de música instrumental verde e amarelo com Thiago França, Orquestra Voadora, Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Banda da Quebrada, Nômade Orquestra, Hurtmold, Thiago Almeida, Cainã Cavalcante e muitos outros.

Pois bem, a impressão que dá é que Amaro não foi para São Paulo ou Rio de Janeiro ser percebido, para daí “fazer sucesso” e voltar por cima. Dando entrevista pelas ruas de Nova York tem o mesmo sorriso de quem “pulou” etapas antes obrigatórias. Quem caminha com ele nas ruas dos EUA é a própria periferia. Periferia é entorno. É o entorno que Amaro carrega consigo. Na volta, com o sucesso na bagagem, não pedirá bençãos aos grandes centros urbano-musicais. Porque ele venceu o Brasil. Venceu o Brasil com sorriso no rosto, o suor da ancestralidade e o sangue, negro.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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