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Dentre as várias coisas que a Netflix faz como ninguém está o resgate de produtos televisivos. Depois da comédia Arrested Development, que alcançou status de cult, e The Killing, o melhor drama policial dos últimos 10 anos, a empresa adquiriu outro programa para chamar de seu. Black Mirror, criada pelo britânico Charlie Brooker, é a série original mais interessante da plataforma.

Produzida inicialmente de 2011 a 2014 pelo Channel 4, a série é uma antologia que explora as consequências do mau uso da tecnologia. Nesse período, o programa ganhou duas temporadas de três episódios cada e um especial de natal. As tramas se desdobram de diversas formas dentro de uma realidade especulativa, em futuros nem tão distantes assim, ou, quando é ainda mais assustar, na sociedade como conhecemos.

Para resumir em um adjetivo, o espelho negro de Brooker é perturbador. A série incomoda, para dizer o mínimo. E parece vir acompanhada de um dever de casa mental que se converte em reflexões a partir das situações apresentadas.

Em seu episódio mais memorável, intitulado White Bear, uma mulher acorda em um mundo distópico estranho, mas nem tanto. De um lado, uma comunidade colada em seus smartphones, registrando cada passo dela. Do outro, pessoas querendo matá-la. E já em sua segunda temporada Black Mirror talvez tenha feito o questionamento mais pesado e mais atual em todos esses anos: qual é o limite para punir um ser humano? Tem mais. Em que medida isso deve estar ao alcance e sob decisão da massa? Um tapa na cara da forma que só essa série pode fazer.

Diferente de qualquer outro show que você tenha assistido (mas claramente referenciada no clássico Além da Imaginação), Black Mirror apresenta uma história fechada por episódio. Aqui não tem personagem para se apegar. Não tem plot para acompanhar a longo prazo. Independentemente disso, o universo do qual Brooker se apropria, mesmo sem lógica narrativa contínua, é muito bem construído e se dialoga a todo momento.

O ‘espelho negro’ que dá título ao programa é, até óbvio, a própria tela de aparelhos como smartphones, TV ou monitor (pós-maratona de Black Mirror). É aquele alento quando nos desligamos da representação digital. É o momento da reflexão tão próprio e necessário que o roteiro da série exige.

A terceira temporada, já sob tutela da Netflix, é cheia de grandes momentos. A premiere Nosedive, com Bryce Dallas Howard (Jurassic World) no papel principal, traça uma época em que as pessoas são controladas pelas notas que recebem umas das outras em uma espécie de aplicativo de relação social. Já o verossímil Shut Up and Dance faz um jogo psicológico a partir de uma armadilha online em que as pessoas precisam lutar de diferentes formas para não ter um segredo obscuro revelado. E aqui a série apresenta seu marco maior neste temporada por apresentar uma situação completamente plausível nos dias atuais.

O grande trunfo da série é justamente usar essas premissas tão assustadoramente familiares ao nosso tempo. Ainda mais quando o texto confronta a necessidade urgente de repensar a sociedade para lidar com as sequências das próprias atitudes. E isso Black Mirror faz muito bem desde o primeiro episódio.

Não é exagero dizer que a produção é uma das mais importantes da década. É até difícil pensar em algo que surja nos próximos quatro anos e se torne mais relevante que Black Mirror porque ela é desses produtos que aparecem de tempos em tempos e retratam nossa sociedade como nenhum outro. Fora que é entretenimento de qualidade. Veja o noticiário. Dê uma olhada rápida na sua timeline. Ainda estamos falando em ficção?

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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