Reza o ditado que o dia 19 de março é a esperança derradeira pelo inverno bom. Não choveu neste feriado de São José em Fortaleza, mas teve aguaceiro de memória pelas chuvas que passei.

Umas das lembranças que guardo com carinho são os banhos de chuva nas goteiras das telhas lá de casa. Eu criança arrodeava o quintal no Parque Araxá aos gritos de minha Vó anunciando que eu ia gripar. A água gelada, salobra, com gosto de terra que engrenhava os cabelos. Era o ápice da minha danação, quando nem tinha tanto medo de relâmpago.

Numa madrugada em especial minha mãe decidiu se banhar na chuva. Fui atrás das goteiras mais uma vez. Tremia os queixos, corria de ponta a outra na varanda de casa até o céu dar trégua. Era uma chuva de criança, sem tempo, sem pressa, enquanto me sentia cúmplice de minha mãe.

Quando adolescente, as chuvas vinham em festas, colando a roupa no corpo, banhando os pés cansados de dança. As saídas viravam farra, os sapatos molhados ficavam imprestáveis, mas eram a marca incontestável da liberdade de virar a noite fora de casa.

Um dos prazeres mundanos que ainda perdura é ouvir a chuva lá fora numa noite de cama quentinha. Roçar o pé na colcha fria é uma mania que nem todo mundo entende, mas uma sensação de prazer que toma de conta. Inigualável. O barulho de água teimando fora de casa e você debaixo das cobertas com quem adora.

No interior, a chuva e a falta dela também viram notícia. Basta um respingo para o mato tomar graça pelo verde. Vira esperança e fartura. Sobe aquele cheiro de terra molhada inconfundível. Casamento da raposa que a gente cresce ouvindo. Aroma que chega antes mesmo dos próprios pingos, avisando que, logo logo, o céu vai banhar o chão.

A gente vai crescendo e ficando com medo de chuva. Dizemos que atrapalha o correr da cidade no dia comum. Bagunça os cabelos, adia os compromissos, dificulta o trânsito. Vira alagamento, tormenta, preocupação. Tudo o mais fica lento com esse transbordar dos córregos indesejados.

A água tem dessas coisas de revirar as memórias, de mexer com o previsível, entranhar-se com a vida. Pinta um quadro bonito de ver, as gotas caindo do céu, embaçando os vidros, engrossando as poças. Águas que vêm a nós sem pedir licença. Elas descem, derrubam, lavam, castigam, desprogramam, anunciam, festejam.

São José agora só no próximo ano. Os encontros com a chuva, porém, continuarão fortuitos, sem mandar aviso. Seguirão driblando as predições na terra do sol de ano inteiro.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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